29 de julho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXXII



XXXII - A Academia de Coimbra e o Ultimatum

A juventude académica secundou o Ultimatum inglês de 11 de Janeiro de 1890 com a força da sua indignação. Como referimos, foi ela que contribuiu, no Porto, para a criação da Liga Patriótica do Norte. Foi também ela que, em Lisboa, organizou manifestações de desagravo, préstitos cívicos à estátua de Camões, ciclos de conferências sobre temas ultramarinos e magotes de voluntários tendo em vista uma Grande Subscrição Nacional, cujos montantes seriam aplicados à ampliação e modernização dos meios bélicos de defesa. Ironicamente, as verbas angariadas foram tão reduzidas que apenas consentiram a aquisição de um vaso de guerra, o Adamastor, ridiculamente insuficiente para desafiar o poderio esmagador da frota de guerra britânica. E Coimbra? Como reagiu a Academia conimbricense, aquela que poderia vangloriar-se de pertencer à única Universidade Portuguesa?

Dada a tradicional complacência dos docentes universitários para com o poder monárquico, era improvável que algum grito de revolta irrompesse das cátedras, apesar da respeitada e tutelar referência constituída pela personalidade exemplar de José Falcão. Quem veio à liça foram os estudantes da cidade do Mondego, fazendo publicar o número único do jornal O Ultimatum. Era uma folha modestíssima, provavelmente porque não teria havido dinheiro para lhe conferir outra dimensão ou um melhor esmero estético. No entanto, foi através dela que se revelaram dois dos maiores nomes que iriam doravante marcar os destinos do republicanismo português: António José de Almeida e Afonso Costa. O primeiro frequentava a Faculdade de Medicina, ao passo que o segundo cursava os estudos jurídicos. Eram dois temperamentos contrastantes, uma vez que Almeida apresentava uma vulcânica emotividade romântica, nos antípodas da fria, implacável e analítica racionalidade de Afonso Costa. Os artigos que ambos redigiram para a modesta publicação já revelavam tal antinomia de sensibilidades e de modos de ser. Eram no entanto – cada um a seu modo – verdadeiramente demolidores para o prestígio da monarquia portuguesa. Afonso Costa escreveu um texto intitulado “A Federação Académica”, apelando sem reticências para a organização de forças revolucionárias que, com o apoio generoso das vontades estudantis, se dariam à missão de apear a realeza. A tamanho desassombro correspondeu António José, com um artigo que, quer pelo seu título quer pela sua lógica interna, representava a mais irreverente provocação que poderia fazer-se ao trono português. Era profundo o desdém que se continha nesse pequeno vaso de veneno, sob o rótulo de “Bragança, o último”. Valerá a pena desnudá-lo nas suas linhas mestras. Um dos argumentos mais utilizados por muitos dos vultos intelectuais monárquicos consistia na invocação de que, sendo o Rei politicamente irresponsável, nos termos da Carta Constitucional de 1826, eram também abusivas todas as imputações que o poderiam visar, a pretexto do contencioso colonial. O estudante António José de Almeida veio então a terreiro perguntar, com a sanha similar à de um Junqueiro ou de um Gomes Leal, se o poder régio era irresponsável devido a uma inconsciência animal ou apenas por força de um estouvamento infantil. O rei era irresponsável? Mas era-o como os animais ou como as crianças? Não satisfeito com tal desmesura, António José de Almeida iria desenvolver a demais argumentação com base nas demonstrações do evolucionismo de Darwin. O sábio autor da Origem das Espécies aventara que a progressão das formas de vida se operava do mais simples para o mais complexo e que a espécie humana ocupava o cume do processo evolutivo por fechar o ciclo biológico das continuidades ininterruptas. A vida, no seu imparável processo de enriquecimento e diferenciação, plasmara no ser humano o mais acabado e actualizado da sua potência primitiva. O estudante da Faculdade de Medicina retirava daqui um novo argumento vexatório. Sendo o monarca irresponsável, isso significava que ele não teria percorrido toda a escala do biótico e teria ficado paralisado num patamar animal inferior. O rei, dado como irresponsável, não seria um homem mas apenas um bicho. Assim sendo, deveria ser enjaulado, exposto num qualquer lugar de diversão e identificado sob a designação de “último animal de Bragança”.

Estes dois artigos valeram aos autores os correspondentes processos judiciais e as penas previsíveis. Mas é indispensável que aqui sejam evocados. Através deles se inaugura um estilo radicalmente novo de propaganda republicana. Ao carácter moderado, quase amistoso, de uma doutrinação republicana puramente pedagógica irá suceder a intrepidez de uma nova geração que não hesitará em empunhar armas para derrubar pela violência mais explícita as instituições adversárias.

22 de julho de 2009

DARWIN, OS EFLÚVIOS E AS ELEIÇÕES

Representação abreviada da classe política portuguesa, em pleno esforço de emissão de eflúvios (com a devida vénia para com o grande João Abel Manta)


Aquilo que se costuma designar (com mais pompa do que verdade) por Democracia Portuguesa tem vindo a sofrer, ao longo das idades eleitorais, um curioso processo de transformação. Refiro-me à metamorfose que vincula esta forma de governo não tanto à matriz dos méritos necessários ao exercício de funções públicas, mas ao selo da hereditariedade, o qual, à partida – certamente por ignorância nossa – se nos afigurava como completamente alheio ao mesmo trabalho.

Convidamos o leitor a fazer um breve exercício. Pesquise atentamente os nomes e sobretudo os apelidos dos ilustríssimos e capacíssimos candidatos a cargos legislativos e autárquicos. Depois, descubra os homónimos na vasta floresta das figuras políticas em actual ou pretérita actividade neste pátrio e gentil torrão, sejam tais figuras maiores, assim-assim ou menores. Vai ver que descobre esta coisa espantosa: o gene de tal gente é tamanhamente transbordante que se plasma nas candidaturas dos filhos e filhas, dos sobrinhos e sobrinhas, dos primos e primas e dos demais parentes e amigalhaços, em linha descendente, ascendente e colateral.

O génio de Darwin, de que celebramos o segundo centenário, não foi bastante para explicar tal prodígio. No entanto, é ele que nos oferece as melhores pistas e hipóteses de explicação. É ou não verdade que a hereditariedade transfere caracteres dominantes e recessivos à progénie? É verdade. Assim sendo, está explicado o enigma. Os titulares de cargos públicos acumulam nas gónodas a excelência e brilho dos seus desempenhos funcionais. E, logo depois, vertem essas magníficas e únicas potencialidades no bornal físico, psicológico e mental da descendência. É por isso que esses candidatos são, sem contradita, os mais capazes que poderiam encontrar-se para o carreirinho do Poder.

Pois sim, dirão os mais suspicazes, mas isso não explica a integração em listas eleitorais de ascendentes e de colaterais, senão mesmo de compadres e comadres. Esta argumentação não colhe. É um erro inadmissível, erro do tenebroso espírito analítico e racionalista que vem corroendo o Ocidente, desde Descartes a Kant, passando por Bertrand Russell e Wittgenstein. É que a actual classe política não actua apenas por via física, fisiológica, gonodal. Opera também por via aérea, metafísica, cabalística. Ela lança eflúvios de genialidade sobre a vasta e ignara parentela; de tal modo que, mirabile dictu, o simples convívio, mesmo distanciado, com a lata Família ou até com o estrito Compadrio dos já eleitos, torna imediatamente elegíveis os felizes usufrutuários dessa mesma convivialidade.

Lembremos a figura de S. Luís de França, o Taumaturgo, para o qual corriam gafos e ictéricos, tísicos e coxos, com a secreta esperança de O poderem tocar. Isso lhes valeria a cura imediata das suas terríveis maleitas. Pois bem: os nossos políticos, ex-políticos e demais venturosos servidores da Causa Pública carregam com eles o poder miraculoso de converterem todos os imbecis, idiotas e cretinos profundos, pelos eflúvios que lançam a partir das suas esforçadas secretárias (estou a referir-me a mobiliário, bem entendido), em Cidadãos dotados, prestantes, arguciosos, finos. É por isso que a actual deriva democrática para formas de República hereditária tem toda a razão de ser. Falta chegar ao exercício vitalício de funções para que desemboquemos na tal Monarquia Republicana de que falam alguns.

A atentar no que se vai passando, esse dia está próximo. Graças a S. Luís! E graças a nós todos, que continuamos a acreditar que vivemos em Democracia …

21 de julho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXXI

XXXI - O ÓDIO DE JUNQUEIRO

Quando o Ultimatum varreu Portugal, em ondas de retórica e de impotência, já Abílio Guerra Junqueiro, transmontano de Freixo de Espada-à-Cinta, era uma notabilidade. Para isso contribuiu a opinião, geralmente adoptada, que o apresentava como um poeta de dimensão excepcional. Em Coimbra, versejara copiosamente n’A Folha, de João Penha; e dera mostras das suas preferências democráticas escrevendo poemetos à radicação da terceira república francesa (A vitória da França. 4 de Setembro de1870) e ao advento da república espanhola de 1873 (À Espanha livre). Pouco depois irá obter um sucesso retumbante com o livro A morte de D. João, obra de sátira ao decadente romantismo carnal de um velho ridículo, falso ícone de conquistas amorosas ultrapassadas.

Junqueiro foi um demolidor, por íntima e ínsita exigência caracterial. Em 1879 fez representar uma peça que redigira com Guilherme de Azevedo e que produziu um escândalo tão sonoro que o poder político se apressou a proibi-la. Tratava-se da Viagem à roda da Parvónia, representada uma só vez em Janeiro de 1879, truculenta sátira às instituições e às figuras gradas do país. Mas como a proibição viera tocada pelos ventos do Partido Regenerador, logo o Partido Progressista veio à liça para acarinhar e conquistar para as suas hostes o insubmisso poeta. Seguir-se-ia, em 1885, o quase inconcebível desafio às crenças católicas tradicionais, através da publicação de um livro herético, vigorosamente denunciador e frontalmente dissidente. Falamos d’A velhice do Padre Eterno. Com ele se procurava esventrar, sem a menor complacência, não só o significado da Divindade bíblica como o suposto préstimo do catolicismo romano. Era uma condenação altissonante da hipocrisia eclesiástica, da cupidez e venalidade do Vaticano e da risível dogmática em que assentava a Igreja de Cristo.

Guerra Junqueiro pertenceu ao grupo gastronómico – e político… - dos “Vencidos da Vida”. Mesmo nele não deixou de revelar a agressividade do seu riso escarninho, sempre pronto a jogar no paradoxo e a retirar provocadores efeitos, por antonomásia. Foi o que aconteceu na oferta de um volume da Velhice do Padre Eterno ao “vencidista” e também sacerdote António Cândido, exemplar que foi entregue com a seguinte dedicatória: “Ao herege António Cândido. O Padre Abílio”! …

O “vencidismo” exprimia a ideia, cara a Oliveira Martins, Carlos Lobo de Ávila, António Cândido, Ficalho, Arnoso e demais amigos de D. Carlos, da necessidade de salvar Portugal através de reforços de autoridade régia e de cesarismos bismarckianos. Mas quando sobreveio o Ultimatum, Guerra Junqueiro, que havia rompido com o Partido Progressista, rompeu também com este grupo, onde estivera em risonho convívio. E descobriu dentro de si um Ódio imenso, condensado, terrível. O alvo passaria a ser D. Carlos, o novo rei, cuja afinidade com esses políticos-gastrónomos era tamanha que ele próprio se proclamava “Vencido suplente”. Doravante, as peças literárias de Junqueiro iriam ser verdadeiros ajustes de contas, dirigidas contra o detestado rei. Assim veio a acontecer com o Finis Patriae, obra que apresentava Portugal como nau sem rumo, entregue aos jogos malabares de trafulhas incapazes. E que dizer desse vaticínio tremendo, dessa desmesura profética que ressaltou do poemeto O Caçador Simão? Simão, um dos apelidos de D. Carlos, era o alienado devoto das artes de Santo Humberto, correndo montes e pisando valados para abater mais uma peça de caça, mesmo quando Portugal mais poderia necessitar dos urgentes cuidados de sobrevivência ministrados pelo seu monarca. O poemeto apareceu no jornal A Província e depois em muitos outros periódicos. Contava o calvário da Pátria, profanada nos seu brios, abandonada à sua sorte, desprezada por aqueles que mais a deveriam acarinhar. Simão, esse, não pensava em mais nada senão em caçar. Daí o refrão que se repetia, obsidiante: «Papagaio real, diz-me, quem passa? / - É el-rei D. Simão que vai à caça» . E como se conclui esta peça terrível? Conclui-se com uma aparentemente ligeira alteração de palavras, as quais convertem o que poderia ser apenas paródico numa exortação à tragédia (uma tragédia que viria deveras a ocorrer, anos mais tarde): «Papagaio real, diz-me, quem passa? / - É alguém, é alguém que foi à caça / Do caçador Simão !... ».

O Ódio de Junqueiro tem de se escrever com maiúscula. É um Ódio de fera, um Ódio de desforra, um Ódio sem indulgência, sem transigência, sem vacilação. Em suma: um Ódio de Ultimatum.

17 de julho de 2009

O NOVO DIA

Ouve: era um dia de sombras e lentas calmarias

por caminhos sem som e fragas solitárias;

e todos os meus passos eram sós, eram párias

suplicando por sinais de novos dias e orgias.



Sente: na tua pele deslizam desejos túrgidos de fogo

em sinfonias musicais de afago, húmido enlace

de dedos e pecados mortais unindo face a face

a súplica fatal co’a oração venal deste meu rogo.



Cheira: há perfumes exóticos nos serralhos de ti

no lívido pecado do guardado sinal de Salomé;

infernos, infusões, calvários, imprecações de fé

espúrias libações de vidas que sentindo não vivi.



Vê: a montanha mais alta é só um dorso de mulher

a repousar sem tempo definido no abandono final

oferecido em laico sacrário a tudo o que é mortal

para que tudo, tudo feneça e cresça em novo Ser.



TUDO ESTÁ PODRE, TUDO ROLOU, EXANGUE.

E NO ENTANTO TUDO É SANGUE DESTE SANGUE!

ALELUIA! ALELUIA! ALELUIA!

SAUDEMOS O NOVO DIA!

12 de julho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXX

Antero de Quental, Presidente da Liga Patriótica do Norte

XXX - O ULTIMATUM E A LIGA PATRIÓTICA DE ANTERO DE QUENTAL

Diziam alguns que o Ultimatum inglês ferira Portugal de morte. Os agrupamentos políticos revolviam-se em contradições e mútuas acusações; o Paço temia ver-se invadido por hordas revolucionárias implacáveis; a opinião pública revelava o caos da desorientação mais completa; nos quartéis, crescia a murmuração e o mal-estar, fruto de um vexame infligido a brios castrenses que estavam ainda por vingar; nos lares, circunspectos chefes de família davam-se à leitura em voz alta dos jornais do dia e, perante o ribombar do noticiário, perguntavam-se pelo amanhã do seu sossego burguês; nos balcões do comércio e nos estaleiros da indústria temiam-se prováveis quebras nos negócios e no ritmo das exportações; nos círculos mais atentos à administração colonial, dava-se como iminente a derrocada do império português.

Subitamente, num número extraordinário do jornal A Província, surgiram considerações graves, dissonantes do alinhamento verboso e impotente com que os românticos revolucionários afagavam as frustrações do egotismo. Tais palavras ocupavam a coluna e meia de um artigo intitulado “Expiação”, redigido por Antero de Quental. Nele se dizia, entre outras ponderações, o seguinte: «Portugal expia, com a amargura deste momento de humilhação e ansiedade, 40 anos de egoísmo, de imprevidência e de relaxamento dos costumes políticos. (…) O nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. (…) Declamar contra a Inglaterra é fácil; emendarmos os defeitos gravíssimos da nossa vida nacional será mais difícil; mas só essa reforma será honrosa, só ela salvadora. Portugal ou se reformará política, intelectual e moralmente, ou deixará de existir. Mas a reforma, para ser efectiva e fecunda, deve partir de dentro e do mais fundo do nosso ser colectivo; deve ser, antes de tudo, uma reforma dos sentimentos e dos costumes». A questão era finalmente colocada no lugar próprio da sua verdade meridiana. Declarava-se, finalmente, que o resgate do País não viria de fora, por maior que fosse o cenário estulto das emoções à solta. A exortação do mais autêntico patriotismo apontava para a interioridade do reconhecimento dos erros, para a retratação de práticas dissolutas e vergonhosas, para a catarse e sublimação dos pecados originais em que naufragara a monarquia constitucional. O artigo de Antero, reduzido às linhas mestras da sua intencionalidade, era uma vigorosa denúncia da geringonça rotativa do partidarismo monárquico.

A mocidade académica nortenha pareceu identificar-se plenamente com o pensamento de Antero de Quental. Estudantes do Porto entenderam então que estava chegado o momento de se organizar uma agremiação capaz de espelhar cristalinamente uma ética patriótica descomprometida, generosa e supra-partidária. Seria uma instituição completamente expurgada do miserável e daninho espírito de grupo ou de facção, servida por um feixe de vontades intrépidas e por clarões de Consciência de uma isenção e de um altruísmo cívico sem paralelo. Apontava-se, em suma, para a criação da Liga Patriótica do Norte. Também se reconheceu que o seu futuro presidente deveria aliar o reconhecimento do prestígio aos primores do pensamento, tendo-se concluído que só Antero de Quental estaria à altura de tão nobre missão.

Chegara, enfim o Homem, de fronte aureolada e de carácter impoluto, capaz de interpretar as necessidades mais recônditas da alma nacional. Uma comitiva de impetrantes, académicos uns, vultos de referência outros, deslocou-se a Vila do Conde. Era aí que o Poeta e Filósofo placidamente vivia, todo entregue aos seus versos, às suas cogitações e ao desvelo posto na educação de duas crianças adoptadas, suas pupilas, filhas do seu defunto amigo Germano Vieira Meireles. Antero aceitou o pedido então feito para presidir à Liga Patriótica do Norte, justificando assim a sua anuência, numa carta de Fevereiro de 1890, dirigida a Oliveira Martins: «Não havia outro homem, e desde que me provaram que eu era o único possível, entendi que não podia recusar-me». Com a sua costumada mestria e o seu usual exagero plástico, Eça de Queirós descreveu a instalação de Antero no Porto, apresentando-o como um novo Sebastião, o mais recente Desejado das turbas: «Na casa em que se hospedara, tremulava sobre uma varanda o estandarte de Portugal, anunciando, à velha moda feudal, a presença do senhor da terra, defensor das gentes e dos gados. Tão simbólico era que alguns mais exaltados, ou mais estéticos, estudavam a forma de uma dalmática de doge, toda em veludo e arminhos, com que ele devia presidir à sessões da Liga!...».

A Liga Patriótica do Norte incluiu na Comissão Executiva, para além do seu presidente, as personalidades de Reis Santos, Jaime de Magalhães Lima, Azevedo Maia, Basílio Teles, Manuel de Castro (conde de Resende), Luís de Magalhães, Júlio de Matos e Luís Soares. Quase todos eram estrelas de primeira grandeza do firmamento social e intelectual português. E sucederam-se as reuniões, com as mais rasgadas confissões de entrega, lealdade e vontade de servir. Mas em vez de serem criadas as condições mais adequadas ao repensar da vocação patriótica e ao corrigir das maleitas sociais e políticas da Grei, a presidência da Liga logo se viu chamada a regular uma pendência entre os estudantes portuenses e o cônsul britânico na Cidade Invicta, Oswald Crawford. É que, à semelhança do que começara por acontecer em Lisboa, também no Porto haviam ocorrido desmesuras e excessos de linguagem, de que foram vítimas algumas damas inglesas. Constando aos estudantes que o cônsul manifestara já, em círculos restritos, a sua impaciência, entendeu a Comissão Executiva da Academia indagar oficiosamente da veracidade de tais informes. A resposta do representante britânico não poderia ter sido mais glacial, aconselhando os académicos portuenses a que “para o futuro [insultassem] só homens, ou sendo possível, se [abstivessem] de insultar” fosse quem fosse. Os brios estudantis sangraram bílis. Mas como a Liga Patriótica do Norte estivesse a dar os seus primeiros passos, o remordimento juvenil não encontrou melhor saída senão a de mandatar o seu presidente para a obtenção das satisfações julgadas curiais. E eis o nosso filósofo envolvido na ingrata missão de comanditário de estudantinhos amuados, desenvolvendo penosas diligências junto dos governantes portugueses para que fosse retirado o mandato diplomático ao odiado Crawford. Enquanto isso, adiava-se para futuro incerto a escavação dos alicerces em que a Liga deveria equilibrar-se para o anunciado renascimento patriótico e para a supressão de vícios fundamente enraizados. Luís de Magalhães, figura proeminente da Comissão Executiva, descreveu com inteira pertinência as causas da extinção da Liga: «O incêndio patriótico fora um fogo de palha: clarão de um momento! Depois do primeiro arranque, sincero e nobre, o egoísmo orgânico da burguesia e a inconsciência popular reapareceram e predominaram. Na nossa preocupação de defender a Liga dos políticos de ofício, fomos criando o vácuo em redor de nós. Desde que não servíamos como um elemento de jogo na tavolagem dos seus interesses e ambições – a prudência aconselhava o abandono. E se os políticos voltavam à sua politiquice, os indiferentes voltavam à sua indiferença e os abstencionistas à sua abstenção». A Liga incorrera no perigoso fascínio de imaginar que a fogueira patriótica poderia alimentar-se da brasa da moral supra-partidária e tendencialmente apolítica, num país sem a tradição de verdadeiro amor pela res publica, num reino carcomido pela lepra da ignorância generalizada, numa formação social desde sempre entregue à manipulação venal da politicagem instalada. Por isso, nem a capacidade filosófica de Antero foi suficiente para suster a maré-alta das indiferenças.

Eça de Queirós designou a Liga como o “derradeiro Fantasma” de Antero. E, com efeito, Antero iria tropeçar em mais uma desilusão, em mais uma razão para o morbo depressivo que o haveria de matar. Mas ninguém matou a Liga; ela feneceu porque o Portugal do tempo lhe virou ostensivamente as costas. É provável que o mesmo viesse a acontecer, se tal fosse o caso, no nosso tempo. Portugal é assim, é isto! E novamente daremos a palavra a Eça para que ele nos descreva não tanto a verdade objectiva da morte da Liga, mas a representação simbólica do seu fim: «Na sessão em que se leram os consideráveis Estatutos só havia, na vastidão dos bancos, quinze membros que bocejavam. E numa outra final, como ventava e chovia, só apareceram dois membros da Liga, o presidente que era Antero de Quental, e o secretário que era o Conde de Resende. Ambos se olharam pensativamente, deram duas voltas à chave da casa para sempre inútil, e vieram, sob o vento e sob a chuva, acabar a sua noite em Santo Ovídio», lugar onde vivia o Conde. E numa carta escrita em Vila do Conde, dirigida a Henrique das Neves, com data de 22 de Julho de 1890, é o próprio Antero de Quental a apresentar assim a certidão de óbito da Liga Patriótica do Norte: «A Liga morreu afinal de pura inanição porque ninguém, no fundo, queria saber nem de colónias, nem de desforra, nem de reformas sociais. O que passou durante este Inverno é a prova mais cabal do estado de prostração do espírito público entre nós».

Quem é que diz que a História se não repete?

7 de julho de 2009

O PRINCÍPIO DA IDENTIDADE






Eu sei que um dia me finarei

insatisfeito

e me procurarei

imperfeito

mais nos livros que não li

do que na vida concreta

que vivi.

Eu sei que os livros por ler

nunca me desiludiram

porque nunca os conheci.

E, no entanto, o secreto desejo

que sonhei

foi ir por esse trilho

(como um rei)

a procurar o cadilho

que não tive.

Mas partirei feliz.

Vivi como quis

na inteireza

da integral certeza

de me saber de pé.

Cada um, afinal,

é como é.´

E eu fui e sou

sempre assim:

equidistante e mudo

para me sentir

uno, frontal

e em tudo

igual a mim.

6 de julho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXIX

Basílio Teles, um dos mais lúcidos historiadores da crise do Ultimatum inglês

XXIX - O ULTIMATUM E O PARTIDO REPUBLICANO

Para que possamos compreender a passividade do Partido Republicano durante os agitados dias que se sucederam ao Ultimatum inglês é necessário evocar a sua peculiar interpretação da história, correlacionando-a com o perfil dos seus chefes. As principais figuras de proa do republicanismo lisbonense, tais como Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, Jacinto Nunes ou Sebastião de Magalhães Lima, perfilhavam um positivismo larvar ou ostensivo. E esta doutrina, longe de conceder preferência a métodos de acção revolucionária, optava por alternativas pacíficas e pedagógicas, dando como adquirido que o tempo se encarregaria de fazer triunfar a causa popular, quando o fruto da Civilização estivesse bem maduro. Era necessário saber esperar o momento da colheita daquela sementeira de ideias que vinha sendo feita há cerca de uma dezena e meia de anos.

Por outro lado, tendo o contencioso colonial anglo-português decorrido num relativo sigilo, longe das curiosidades dos jornais daquele tempo, o Partido Republicano foi apanhado completamente desprevenido pelo inesperado veredicto dos factos.

Talvez tivesse sido relativamente fácil ao republicanismo apropriar-se da indignação popular e orientá-la no sentido mais conveniente para os seus objectivos. Mas – há que dizê-lo – o Partido Republicano vivia, desde o seu terceiro Congresso de 1887, uma situação interna muito convulsa e com facções em aberto conflito. José Elias Garcia e Zófimo Consiglieri Pedroso, representantes do Partido na Câmara Baixa, eram acusados pela sensibilidade mais radical, comandada por Manuel de Arriaga, de estarem em vias de concluir uma aliança com uma patrulha monárquica minoritária, a Esquerda Dinástica, dirigida por Barjona de Freitas. Isto explica que apesar da desorientação das forças monárquicas e da notória inquietação do Paço, não tenha havido figuras republicanas representativas a dar um rumo seguro e firme ao protesto popular. Quem apareceu a procurar dirigir o torvelinho da arruaça foi Eduardo de Abreu que era, por então, deputado do Partido Progressista e que mais tarde viria a filiar-se no Partido Republicano.

O republicanismo limitou-se a imitar a inconsequência das ruas, preferindo o efeito teatral, a declamação palavrosa e o pequeno romantismo de saguão ao golpe certeiro dirigido ao coração do regime. Por isso foram tão inofensivas as catilinárias de certos jornalistas, em catalepsia duvidosamente patriótica. Os Debates, por exemplo escreviam: “Portugueses! Abaixo a monarquia! Abaixo os quadrilheiros! Abaixo a infâmia!”. O homem da rua repetia tudo isto e recolhia a penates, no fim do dia, em feliz e inocente estado de graça. Fizeram-se romagens cívicas de desagravo, integrando algumas delas individualidades maçónicas e figuras republicanas destacadas. Uma dessas procissões laicas rumou à Praça de Camões, depondo aos pés da estátua do autor d’Os Lusíadas uns panos negros, bem funerários, com esta legenda, pretensamente solene: “Estes crepes que envolvem a alma da Pátria são entregues ao respeito e à guarda do povo, da mocidade, da academia, do exército e da armada nacional. Quem os arrancar ou mandar arrancar é o último dos covardes vendidos à Inglaterra”. O Martinho, ao Rossio, café que dava guarida a tertúlias jacobinas e a simples capelanias de má-língua, acabou por exibir nas suas paredes as efígies de muitas das figuras governamentais que o Ultimatum soterrara, apontando-as como traidoras sem perdão.

Basílio Teles, uma das personalidades mais brilhantes e independentes da panóplia do republicanismo coevo, historiou minuciosamente toda esta colectiva impotência numa obra notável, intitulada Do Ultimatum ao 31 de Janeiro. Os eventos a que Lisboa pôde assistir no dia 11 de Fevereiro, quando tinha decorrido um mês apenas sobre a data do Ultimatum, dão-nos bem a noção da debilidade do comando republicano. Convocara-se uma reunião cívica para o Coliseu, mas o Governador Civil mandou encerrar a sala na hora do comício e fez guardar as respectivas portas por umas dezenas de guardas municipais. A multidão retrocedeu, obediente. No Rossio, Jacinto Nunes e Manuel de Arriaga procuraram reorganizar os restos desse refluxo amedrontado, perorando em plena rua, sem outro êxito palpável que não fosse o das correrias plebeias à frente dos chanfalhos dos representantes da Ordem. Os improvisados oradores, ainda que muito vitoriados pelos fugitivos, foram presos e conduzidos a bordo de uma embarcação ancorada no Tejo. Esperava-se que à noite fosse feito o ajuste de contas. Mas bastou que, depois do sol-posto, soassem umas tantas apitadelas policiais aos ouvidos de seis ou sete mil pessoas acantonadas no Chiado, Loreto e S. Roque para que todos cumprissem o entremez ordinário da fuga e da consequente mudança da roupa mais interior no agasalho da segurança doméstica. O deplorável episódio ficou conhecido, nos fastos lisboetas, como a “campanha dos apitos”. Fialho de Almeida, o Irkan dos Pontos nos ii, esbravejava neste periódico de Rafael Bordalo Pinheiro: “Não, isto não é povo, é lama plástica. Isto não é amor da pátria, é balela ridícula”. Converter o povoléu em Povo era, é, sempre será uma tarefa hercúlea. Mas é essa a tarefa a desempenhar, em todos os tempos, pelos mentores da Cidadania decidida e convicta.

1 de julho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXVIII


Esta imagem de D. Carlos e de D. Amélia de Orleans reproduz fielmente o aspecto físico do casal régio pouco antes do Ultimatum inglês

XXVIII - O ULTIMATUM E A MONARQUIA

A monarquia constitucional portuguesa sofreu em cheio os efeitos do Ultimatum em momento particularmente delicado. D. Luís, cujo reinado fora um modelo de constitucionalidade cartista, havia falecido na cidadela de Cascais em 19 de Outubro de 1889. Sucedera-lhe o seu filho D. Carlos, que logo viu ensombrado o seu recente casamento com Dona Amélia de Orleans por esta verdadeira tempestade diplomática, logo transformada em vaga de fundo de agitação social, de temerosas dimensões. Os monárquicos não contaram que o grito de alma saído dos recessos do sentimento patriótico dos portugueses sofresse, no interlúdio das palavras iradas e dos gestos enfáticos, uma significativa mutação de alvo. Inicialmente, o ataque foi colectivamente desferido sobre a Grã-Bretanha, apresentada como devassa, execrável, cúpida e capaz de todas as indignidades e latrocínios. Nas primeiras horas, a explosão tinha sido apenas anglófoba e platonicamente nacionalista. Mas tudo isto irá transmudar-se num agudo brado anti-monárquico, prenhe de raiva e de exigência de vingança. E era este câmbio que a pena sagaz de António Enes registava, em artigos publicados nos dias 6 e 8 de Fevereiro no jornal O Dia. O governo regenerador, comandado por Serpa Pimentel, sob o pressentimento de um ataque às instituições, restringiu fortemente o exercício das liberdades de expressão e de manifestação. Estas medidas fortaleciam a convicção de que os poderes oficiais repudiavam o movimento nacional de protesto. Ora, segundo António Enes, era isto que estava “reunindo em volta da bandeira do ódio à Inglaterra paixões políticas, ressentimentos antigos e esperanças revolucionárias”. E acrescentava, sem dúvidas na voz: “Hoje, essa bandeira já não é só de guerra contra o estrangeiro insolente; principia a representar uma oposição enérgica às instituições vigentes, acusadas de terem desarmado a honra e os interesses do país perante os insultos e as espoliações da força”. Certeiras palavras! Tão certeiras que anos depois, o republicano João Chagas diria o mesmo em mais poupadas palavras: “Começou-se por gritar, abaixo a Inglaterra; acabou-se por gritar, viva a República”.

A verdade é que os dois partidos da “rotação” monárquica, o Regenerador e o Progressista, não lograram subtrair-se ao atoleiro da bátega colectiva. O Partido Progressista, alvo preferencial da vozearia primitiva, nunca teve condições para transformar o Ultimatum numa verdadeira questão internacional, merecedora de activas solidariedades externas. Julgou poder jogar contra o trono da Rainha Vitória a eventualidade de uma nova aliança, a forjar com o poder militarista da Alemanha de Bismarck, à sombra da discreta cumplicidade e da boa-vontade do governo francês. Mas as convenções luso-francesa e luso-alemã de 1886, que sonhavam com o tal “novo Brasil em África”, ressalvavam expressamente os direitos que outra qualquer potência julgasse ter aos territórios que nos eram reconhecidos. Por isso, bastaria que os britânicos se enfadassem e replicassem com entono para que Portugal ficasse completamente isolado. Sobrava o Partido Regenerador? Sobrava. Mas também este demonstraria, logo a seguir, através da negociação das tibiezas constantes das cláusulas do tratado ad referendum de 20 de Agosto, que não era do seu interior que poderiam ser sacados trunfos suficientes para moderar a Inglaterra. Ou seja: o Ultimatum constituiu um dobre de finados sobre a capacidade de ambos os partidos monárquicos, por igual impotentes para fazer singrar os miríficos projectos expansionistas de um Portugal sem frota de guerra, sem marinha mercante e sem solvência financeira internacional. Mas este considerável acontecimento assinalará também o início de um novo estilo de realeza. O princípio anglo-saxónico de acordo com o qual “ o Rei reina mas não governa” será rapidamente substituído pelo ditame cesarista que encoraja o Rei a reinar “realmente”, ou seja, convertendo-se numa espécie de chefe de governo. Era esta, de resto, a directriz proposta pelo famoso grupo gastronómico-político dos Vencidos da Vida, do qual o próprio D. Carlos se considerava “Vencido suplente”. O “vencidismo” de Carlos Lobo de Ávila, Oliveira Martins e António Cândido, dos palacianos Ficalho e Arnoso e do próprio Ramalho Ortigão pronunciava-se pelo alargamento régio da competência executiva e pelo intervencionismo do Poder Moderador em todos os domínios da mais alta Administração Pública. O abalo do Ultimatum reforçou esta proposta, indo originar este paradoxal resultado: um monarca recém-chegado ao Poder, isento das máculas do Ultimatum, irá macular-se sem remédio, devido, em grande medida, a esse mesmo Ultimatum.