Subitamente, num número extraordinário do jornal A Província, surgiram considerações graves, dissonantes do alinhamento verboso e impotente com que os românticos revolucionários afagavam as frustrações do egotismo. Tais palavras ocupavam a coluna e meia de um artigo intitulado “Expiação”, redigido por Antero de Quental. Nele se dizia, entre outras ponderações, o seguinte: «Portugal expia, com a amargura deste momento de humilhação e ansiedade, 40 anos de egoísmo, de imprevidência e de relaxamento dos costumes políticos. (…) O nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. (…) Declamar contra a Inglaterra é fácil; emendarmos os defeitos gravíssimos da nossa vida nacional será mais difícil; mas só essa reforma será honrosa, só ela salvadora. Portugal ou se reformará política, intelectual e moralmente, ou deixará de existir. Mas a reforma, para ser efectiva e fecunda, deve partir de dentro e do mais fundo do nosso ser colectivo; deve ser, antes de tudo, uma reforma dos sentimentos e dos costumes». A questão era finalmente colocada no lugar próprio da sua verdade meridiana. Declarava-se, finalmente, que o resgate do País não viria de fora, por maior que fosse o cenário estulto das emoções à solta. A exortação do mais autêntico patriotismo apontava para a interioridade do reconhecimento dos erros, para a retratação de práticas dissolutas e vergonhosas, para a catarse e sublimação dos pecados originais em que naufragara a monarquia constitucional. O artigo de Antero, reduzido às linhas mestras da sua intencionalidade, era uma vigorosa denúncia da geringonça rotativa do partidarismo monárquico.
A mocidade académica nortenha pareceu identificar-se plenamente com o pensamento de Antero de Quental. Estudantes do Porto entenderam então que estava chegado o momento de se organizar uma agremiação capaz de espelhar cristalinamente uma ética patriótica descomprometida, generosa e supra-partidária. Seria uma instituição completamente expurgada do miserável e daninho espírito de grupo ou de facção, servida por um feixe de vontades intrépidas e por clarões de Consciência de uma isenção e de um altruísmo cívico sem paralelo. Apontava-se, em suma, para a criação da Liga Patriótica do Norte. Também se reconheceu que o seu futuro presidente deveria aliar o reconhecimento do prestígio aos primores do pensamento, tendo-se concluído que só Antero de Quental estaria à altura de tão nobre missão.
Chegara, enfim o Homem, de fronte aureolada e de carácter impoluto, capaz de interpretar as necessidades mais recônditas da alma nacional. Uma comitiva de impetrantes, académicos uns, vultos de referência outros, deslocou-se a Vila do Conde. Era aí que o Poeta e Filósofo placidamente vivia, todo entregue aos seus versos, às suas cogitações e ao desvelo posto na educação de duas crianças adoptadas, suas pupilas, filhas do seu defunto amigo Germano Vieira Meireles. Antero aceitou o pedido então feito para presidir à Liga Patriótica do Norte, justificando assim a sua anuência, numa carta de Fevereiro de 1890, dirigida a Oliveira Martins: «Não havia outro homem, e desde que me provaram que eu era o único possível, entendi que não podia recusar-me». Com a sua costumada mestria e o seu usual exagero plástico, Eça de Queirós descreveu a instalação de Antero no Porto, apresentando-o como um novo Sebastião, o mais recente Desejado das turbas: «Na casa em que se hospedara, tremulava sobre uma varanda o estandarte de Portugal, anunciando, à velha moda feudal, a presença do senhor da terra, defensor das gentes e dos gados. Tão simbólico era que alguns mais exaltados, ou mais estéticos, estudavam a forma de uma dalmática de doge, toda em veludo e arminhos, com que ele devia presidir à sessões da Liga!...».
A Liga Patriótica do Norte incluiu na Comissão Executiva, para além do seu presidente, as personalidades de Reis Santos, Jaime de Magalhães Lima, Azevedo Maia, Basílio Teles, Manuel de Castro (conde de Resende), Luís de Magalhães, Júlio de Matos e Luís Soares. Quase todos eram estrelas de primeira grandeza do firmamento social e intelectual português. E sucederam-se as reuniões, com as mais rasgadas confissões de entrega, lealdade e vontade de servir. Mas em vez de serem criadas as condições mais adequadas ao repensar da vocação patriótica e ao corrigir das maleitas sociais e políticas da Grei, a presidência da Liga logo se viu chamada a regular uma pendência entre os estudantes portuenses e o cônsul britânico na Cidade Invicta, Oswald Crawford. É que, à semelhança do que começara por acontecer em Lisboa, também no Porto haviam ocorrido desmesuras e excessos de linguagem, de que foram vítimas algumas damas inglesas. Constando aos estudantes que o cônsul manifestara já, em círculos restritos, a sua impaciência, entendeu a Comissão Executiva da Academia indagar oficiosamente da veracidade de tais informes. A resposta do representante britânico não poderia ter sido mais glacial, aconselhando os académicos portuenses a que “para o futuro [insultassem] só homens, ou sendo possível, se [abstivessem] de insultar” fosse quem fosse. Os brios estudantis sangraram bílis. Mas como a Liga Patriótica do Norte estivesse a dar os seus primeiros passos, o remordimento juvenil não encontrou melhor saída senão a de mandatar o seu presidente para a obtenção das satisfações julgadas curiais. E eis o nosso filósofo envolvido na ingrata missão de comanditário de estudantinhos amuados, desenvolvendo penosas diligências junto dos governantes portugueses para que fosse retirado o mandato diplomático ao odiado Crawford. Enquanto isso, adiava-se para futuro incerto a escavação dos alicerces em que a Liga deveria equilibrar-se para o anunciado renascimento patriótico e para a supressão de vícios fundamente enraizados. Luís de Magalhães, figura proeminente da Comissão Executiva, descreveu com inteira pertinência as causas da extinção da Liga: «O incêndio patriótico fora um fogo de palha: clarão de um momento! Depois do primeiro arranque, sincero e nobre, o egoísmo orgânico da burguesia e a inconsciência popular reapareceram e predominaram. Na nossa preocupação de defender a Liga dos políticos de ofício, fomos criando o vácuo em redor de nós. Desde que não servíamos como um elemento de jogo na tavolagem dos seus interesses e ambições – a prudência aconselhava o abandono. E se os políticos voltavam à sua politiquice, os indiferentes voltavam à sua indiferença e os abstencionistas à sua abstenção». A Liga incorrera no perigoso fascínio de imaginar que a fogueira patriótica poderia alimentar-se da brasa da moral supra-partidária e tendencialmente apolítica, num país sem a tradição de verdadeiro amor pela res publica, num reino carcomido pela lepra da ignorância generalizada, numa formação social desde sempre entregue à manipulação venal da politicagem instalada. Por isso, nem a capacidade filosófica de Antero foi suficiente para suster a maré-alta das indiferenças.
Eça de Queirós designou a Liga como o “derradeiro Fantasma” de Antero. E, com efeito, Antero iria tropeçar em mais uma desilusão, em mais uma razão para o morbo depressivo que o haveria de matar. Mas ninguém matou a Liga; ela feneceu porque o Portugal do tempo lhe virou ostensivamente as costas. É provável que o mesmo viesse a acontecer, se tal fosse o caso, no nosso tempo. Portugal é assim, é isto! E novamente daremos a palavra a Eça para que ele nos descreva não tanto a verdade objectiva da morte da Liga, mas a representação simbólica do seu fim: «Na sessão em que se leram os consideráveis Estatutos só havia, na vastidão dos bancos, quinze membros que bocejavam. E numa outra final, como ventava e chovia, só apareceram dois membros da Liga, o presidente que era Antero de Quental, e o secretário que era o Conde de Resende. Ambos se olharam pensativamente, deram duas voltas à chave da casa para sempre inútil, e vieram, sob o vento e sob a chuva, acabar a sua noite em Santo Ovídio», lugar onde vivia o Conde. E numa carta escrita em Vila do Conde, dirigida a Henrique das Neves, com data de 22 de Julho de 1890, é o próprio Antero de Quental a apresentar assim a certidão de óbito da Liga Patriótica do Norte: «A Liga morreu afinal de pura inanição porque ninguém, no fundo, queria saber nem de colónias, nem de desforra, nem de reformas sociais. O que passou durante este Inverno é a prova mais cabal do estado de prostração do espírito público entre nós».
Quem é que diz que a História se não repete?
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