29 de setembro de 2008

MAR DA PALHA

E se, verdadeiramente, Portugal não devesse ter saudades do que foi? E se os Gamas, os Cabrais, os Perestrelos, a demanda do Preste João e o elefante ao Papa não tivessem sido senão o pesadelo do domínio fero e bruto sobre populações inermes ou o simbolismo cenográfico de uma esquizofrenia da Vontade? E se tivessem sido muito mais imperiosos e vivos os desejos egoístas de encher o bornal de ouro fácil do que as intenções altruístas de dar ao Mundo novos mundos? E se um Sá de Miranda tivesse tido razão, quando escreveu que “ao cheiro desta canela o Reino se despovoa”? E se o implacável requisitório de Antero de Quental, nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, imputando filáucia e desvergonha às imposições de partida lançadas pelos grandes da Corte sobre os “gentios do interior”, se revelasse singelamente razoável e cristalinamente verdadeiro? Quem poderá impedir-nos de pensar assim, com a radicalidade ousada dos que já nada esperam, já nada têm a perder ou a ganhar, mas decidem dar respiradouros a todo um mundo de possibilidades, de verdades em embrião? E se a mais íntima vocação portuguesa tivesse sido o agro em vez da onda, a miniatura em vez da imensidão, o castiço em vez do universal apátrida? A Suíça de ontem e de hoje, para referendar o argumento com um exemplo óbvio, valeu ou vale menos do que Portugal, por não ter tido epopeia ultramarina? Lá se ostentou, com drama, uma aventura mental e religiosa, se nos lembrarmos que por lá se incendiaram as cóleras protestantes de um Calvino, entre outros, contra o desenfreado apetite das bulas pontificais romanas. “Pois sim”, replicarão uns tantos, “mas estão agora condenados aos chocolates, aos relógios de precisão e aos cofres de segredo”. E nós? Com tamanho passado, estamos hoje condenados a vender o sol do Algarve aos abonados anciãos da Europa, repletos de pecúnia e de artrite, e nem sequer nos é permitido cultivar, por grosso, as couves do caldo verde. A Europa não deixa!

Além disto, teria sido justo, criterioso, equilibrado, fundar na maresia, segundo alguns, uma identidade nacional multissecular e cortar agora, inopinadamente, o nexo, tantas vezes apresentado como umbilical, pondo-nos apenas ao olhar a realidade do além-Pirinéus ? Será isto um retorno a nós próprios? Poderia aqui emergir a teoria da dupla matriz nacional: éramos lavradores e cabreiros por tradição, mas a realeza renascentista fez de nós nautas por vocação. Por vocação ou por obrigação?

Pressentimos que tantas são as perguntas que se colocam como as que se dissolvem numa infusão de perplexidades. De uma forma ou de outra, quero ir contemplar o Tejo. Ali para os lados do “mar da palha” … 

    

25 de setembro de 2008

"PORTUGUESES SOMOS"

À memória de Joel Serrão

 Na realização existencial dos seres humanos e na consumação moral dos objectivos das pátrias impõe-se sempre o imperativo de se saber para onde vamos e o que queremos fazer. Sem este nítido discernimento, a vida individual andará aos baldões, como barco sem vela, e a existência colectiva afundar-se-á na mediocridade de uma simples gestão de sobrevivência. No decurso da multissecular existência de Portugal foi possível  definir, a espaços, alguns magnos desígnios colectivos, que lhe galvanizaram as forças e lhe clarificaram os programas de acção. À luta pela definição das fronteiras territoriais, dos séculos XII e XIII, sucedeu-se a saga das descobertas marítimas, a partir dos finais do século XV. Mas esta visão de transcendência, este olhar para o além de si próprio, parece ter-se esgotado com o fim da aventura náutica. Portugal criou um Império que não soube desenvolver e que, em última análise, pouco lhe aproveitou. À dinâmica de D. João II, dos Infantes D. Pedro e D. Henrique e do Rei Venturoso sucedeu-se uma estática de pura conservação defensiva, como se o país tivesse caído no torpor de uma digestão laboriosa ou na inércia de uma depressão definitiva. Perdido o horizonte do além, Portugal centrou a visão própria no aquém de si mesmo, passando a expressar o pior do seu património caracterial. E assim irromperam os traços mórbidos do choradinho, do destino fadista, da miniaturização como perspectiva, das emulações e das invejas paroquiais, da crápula instalada nas relações de sociabilidade, da incapacidade de inserir em vectores universais a sua cultura autóctone, do miserabilismo assumido como ditame inevitável. É este o acervo anunciador de um colapso sempre adiado, mas omnipresente.

É certo que, também intermitentemente, têm surgido entre nós episódios eruptivos, de dimensão predominantemente interna, que contribuíram para mascarar a maré vasa do nosso perdido universalismo. As guerras liberais do século XIX e a guerra colonial do século XX, longe de se inserirem na visão alargada dum mundo “que pula e avança”, à maneira de António Gedeão, plasmam-se, respectivamente, numa simples luta entre irmãos desavindos, ávidos e rudes, ou na inconcebível cegueira de um ditador sertanejo quanto à percepção das correntes profundas da História universal.

Hoje, porém, Portugal nem sequer se confronta com esta sorte de derivativos ou de panaceias evasivas. Hoje, Portugal, como atrelado subalterno de uma Europa onde nada vale e nada conta, é um Colectivo sem norte, sem referências e em perda acelerada de identidade. Começam a ouvir-se por aí apologias iberistas, que já nem sequer desencadeiam os nojos e repelências com que foram recebidas nos meados do século XIX. Que queremos? Para onde vamos? Que lugar nos está reservado no concerto das nações? Que podemos fazer por nós próprios, para além do exercício mesquinho de garantirmos ( se garantirmos …) as três refeições diárias? Claro que poderemos sempre dizer que estamos vivos, o que já não é mau! Mas, estaremos vivos, de facto? Quem semeou a alma pelas vastas pradarias de África e da Índia, da Ásia e do Brasil, quem levou a mala de cartão para Paris e quis entregar ao ignoto Preste João os termos de um acordo de amizade, quem levou à Roma dos Papas a imponência de um elefante vivo, quem tudo isto fez, teria o direito de esperar no presente um retorno mais confortante. Portugal tem vindo a interpretar um destino histórico singular, que se equilibra entre o sublime grotesco e o trágico risível. Como o filho pródigo da Bíblia, delapidou longe da casa paterna o património da ancestral herança. Gastou tudo, às punhadas: o sangue, o sémen, a Ideia, o dobrão, a Palavra. Regressou abatido e miserável. Mas, ao contrário do episódio bíblico, passou a habitar uma casa de empréstimo. Chama-se Europa. Tem como função fazê-lo esquecer, de uma vez por todas, o rosto que já teve.

 

22 de setembro de 2008

UMA BORBOLETA NO VATICANO


A Praça de S. Pedro, em Roma, regurgitava de preces e de transeuntes devotos. Era um marulhar de formigas em alvoroço, muito compenetradas, graves e mal tingidas de cores neutras. Embora estivesse calor, os corpos encontravam-se suficientemente tapados, não fossem os mesmos lembrar alguma orgia romana, talvez outrora perpetrada no Fórum, nesse espaço por longos tempos desprezado, mas de onde se fizeram transportar (às ocultas ?) parte dos soberbos mármores, outrora dedicados ao hino glorificador dos deuses vencidos. Hoje, o Deus vencedor – tão longe do humilde espírito do Rabi galilaico… – blasona a sua condição de triunfador incontestável, decretando as nostalgias de Infinito nos corações e as imposições de pudicícia nos corpos. Todas os templos católicos de Roma ostentam à entrada um cartaz morigerador, onde se encontram desenhadas minuciosamente as peças de roupa consentidas e aquelas que são vistas como indutoras do pecado.

Foi então que a vi. Não teria mais de dezassete ou dezoito anos. Fresca como o rocio da manhã. Amarela na roupa escassa e rosada na face risonha.Um anátema insultuoso em pleno Vaticano. E a matéria do seu corpo, essa famigerada condição de humano desejo, esse pressuposto teológico de decadência, simbolizaria, para todos os que quisessem realmente VER, o viço das regras de Vitrúvio e a superioridade estética do paganismo. 

Como uma borboleta amarela, rutilante de graça e de paradoxo, a rapariga volitou por entre a gente parda de S. Pedro e acabou por desaparecer numa esquina. 

Do alto da arcaria, os Santos, os Anjos e os Arcanjos respiraram de alívio.  

8 de setembro de 2008

CONTRA A DEMAGOGIA


O Patriotismo, o Civismo, o Espírito de Missão, a Cidadania, todos esses supremos encantos democráticos, todas essas maravilhosas dádivas da deusa Democracia, enfermam de um mal profundo, cujo diagnóstico está por fazer, apesar da sua manifestação periódica: tais primores dormem admiravelmente, em torpor invencível, impenetrável, durante meses a fio, anos atrás de anos, para darem finalmente conta de si, muito alegres, muito opiniosos, muito repletos de viço e de seiva … nas vésperas dos actos eleitorias.
As Pátrias mal se aguentam nas andas carunchosas, revelam desfalecimentos, resvalam à beira de fundões infinitos – mas os patriotas ressonam em boa ordem, à luz das estrelas mortiças. A Educação Cívica anda por aí aos baldões duvidosos de vândalos, armados de “sprays” ou camartelos para as vandalizações de edifícios privados ou para a destruição do Património colectivo – mas os bravos campeões do Bem Comum, estirados na “chaise longue” da comodidade, viram-se para o outro lado e pigarreiam, de olhos bem fechados. A Obra Colectiva revela-se anémica, enfezada, quase envergonhada, como se necessitasse de suprimentos de alma ou de unguentos reconstituintes – mas estes tais Missionários da Colectividade coçam a moleirinha da preguiça e entregam-se, regalados, aos braços de Morfeu. A Cidade desordena-se, entope, descaracteriza-se, perde influência, perde força, perde indústria, ganha insegurança, ganha bolores de incomodidade, ganha o ranço da paragem no tempo e da deselegância do espaço – e os paladinos da Polis continuam abúlicos e eternamente devotados ao remanso dos lençóis.
Entretanto, o tempo vai passando, implacável. Aproximam-se eleições. E então é um “valha-me Deus, que dormi demais”. Todos despertam, sem excepção, muito lépidos, muito senhores das suas verdadinhas, muito trepadores, muito escritores, muito vaidosos da sua entrevista, muito guardadores da sua rua, do seu bairro, da sua Cidade, do seu País, do seu Cosmos.
Há em toda esta comichão “patrioteira” e “civiqueira” , em toda esta geringonça de afogadilho, um halo de mercantilismo, um cheiro a Feira da Ladra (com vantagens sobejas para o que nesta se vende), um fartum a Ali Babá que deixa perplexo o mirone ou o simples curioso.

É tempo de desmascarar esta mistela. E de dizer que as sonoras afirmações, os descantes, os despiques, os motes e motejos desta raça de gente são percepcionados pelo anónimo, pelo simples pagador de impostos, pelo aplicado oficial do seu ofício, como uma coisa “lá dos gajos”, que apenas provoca um bocejo de tédio e, em certos momentos, uma imensa explosão de hilariedade. O mal é que rimos sobre a hipoteca do futuro das mais próximas gerações.

7 de setembro de 2008

SENTIR OS SENTIDOS





Em colcheias confusas

Vou viver no teu riso ´

Feliz.

Mas se assim o quero e quis

É do teu corpo inciso

Que bebo músicas

Celestiais

Em mim infusas

Nas escusas vibrações

Do beijo

E do desejo.

4 de setembro de 2008

NARCISISMOS

A personalidade narcísica adora-se, afaga-se, superlativiza-se, mas não se suporta nos confrontos decisivos que resultam do embate com a existência e com a verdade do viver. Não é certo que o narciso tenha quebrado todos os laços com a sociedade, abismando-se apenas na contemplação de si mesmo. O narciso sofre quando não se sente o centro de todas as atenções. Isto significa que depende muito mais dos outros do que o comum dos mortais. A sua maldição é a indiferença que a sua presença possa provocar. E é por aqui que chegamos ao paradoxo do narcisismo: para poder adorar-se carece de poder seduzir. E a sedução, como é sabido, é a cativação do Outro (lembremos O Principezinho, de Saint-Exupéry). Para cativar o próximo, o narciso necessita de sair de si, ou seja, de se alienar. A contradição do narcisismo é a de ter de viver num mundo regido por regras que olvidam ou minimizam a existência de narcisos. 

É por isso que é tremendo e temível o perigo de podermos ser governados por personalidades narcísicas. Como a fruição estética irá sempre predominar sobre a imposição ética, o narciso cometerá as mais indescritíveis atrocidades para materializar a exigência do “reparem em mim!”. E quanto menos ele for capaz de atrair a atenção do auditório, maior será o impulso cego, a premência irrenunciável, o engodo insidioso de vir a conseguir pela crueldade o que não lhe é possível obter pela solidariedade. “Reparem em mim!” teria sido a fatuidade que impôs a Nero o incêndio de Roma, a Hitler a boçalidade da “solução final” e a Estaline a hecatombe de todos os Gulag e de todos os “planos quinquenais de extermínio”.  

1 de setembro de 2008

FAVORES DE CRONOS


Existe um fundo de permanência na mudança que é perturbante e paradoxal. O nosso calendário exibe festividades litúrgicas, domésticas, ociosas, profissionais, etc. E ostenta momentos memoráveis, que os adolescentes resguardam com folhas secas de hera ou em inscrições buriladas na casca das árvores ou esparramadas a negro em paredes de bairro. Os adolescentes? Que digo eu? Adolescentes fomos e somos nós todos, embora uns se revelem mais envergonhados ou menos francos do que outros.
Quando não guardamos lembranças preciosas no simbolismo das folhas, por acharmos que tal é já caduco, romântico em demasia ou simplesmente fora de moda, remetemo-las, bem dobradas, para os escaninhos da alma (seja lá o que isso for). E, como dizia Fenando Pessoa, em vera versão (heterónimo de si) ou em heterónimo (verdade do Outro-Eu), vamos depois recordando coisa por coisa, como quem dedilha uma harpa de sonoridades previamente combinadas, em registo comemorativo … Pois não era ele que afirmava, muito profético, que depois da morte todos iríamos ser recordados pelo menos uma vez por ano – era optimista, este Pessoa ! – “comemorativamente”?
Mas quando tudo se repete vezes de mais, isto é, quando nos empanzinamos de memória, então ficamos tristes connosco, ou com a vida que foi sugada pela voracidade do Tempo, por esse Cronos que a própria mitologia grega considerou mais alto do que Zeus. Ou então ficamos soturnos, pensativos, encarquilhados a um canto, por ser tudo tão breve, tão datado, tão pretérito. E acabamos por dizer, ao apagar a luz do embaraço: - “Até amanhã !”.