30 de maio de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXII


XXII - O BARRIL DE PÓLVORA DA BACIA DO CONGO

A partilha da África por parte das potências coloniais europeias foi um dos episódios mais hipócritas alguma vez acontecidos na cena política mundial. A Europa arrogava-se o exclusivo daquilo que designava por “Civilização”, entendendo por esta palavra o todo compósito da sua religião, cultura, hábitos, tipos de sociabilidade e tradições. Daqui decorria que a peculiaridade dos gentios autóctones, em todas as suas dimensões e formas de expressão, era interpretada como sinal de inferioridade e de primitivismo selvagem. E era em relação a este estigma de subalternização que se arvorava a legitimidade de uma presença europeia omnímoda. Por maiores que fossem ou viessem a ser as crueldades, os excessos, as formas escancaradas da mais desenfreada exploração, incidindo sobre o património natural ou sobre a mobilização compulsiva de mão-de-obra – tantas vezes na sua modalidade extrema de escravatura – a Europa declarava invariavelmente, através dos seus políticos, que se encontrava em África numa superior “missão civilizacional”!

O caso da Bélgica foi, a esta luz, verdadeiramente emblemático. Em 1876, Leopoldo II reuniu em Bruxelas um Congresso Geográfico Internacional que se propunha debater os momentosos problemas do esclavagismo, do abolicionismo e do desenvolvimento das colónias em todas as suas vertentes, mesmo as mais decantadamente éticas. A partir das mimosas preocupações enunciadas pelos congressistas, assistiu-se ao nascimento, nos anos seguintes, de um conjunto de Associações Internacionais e de Comissões de Estudo que foram deixando esbater as originárias intenções de cooperação, multilateralidade e elevação civilizacional para tudo acabar por se reduzir a uma artificiosa operação de anexionismo colonial. Foi em 1883 que Leopoldo II e Stanley criaram a Associação Internacional do Congo, para a qual reclamaram personalidade jurídica internacional e que iria dedicar-se à tarefa de erigir um futuro estado “autónomo” na bacia do Congo. Era a semente do futuro Congo Belga e a alvorada de um dos mais sombrios episódios de desaforada e inaudita instrumentalização de nativos.

Portugal invocava direitos sobre alguns territórios dessa zona. A estratégia lusitana consistia em definir um eixo de expansão a partir do Ambriz, ocupado em 1855, tendo em vista o ulterior avassalamento de Noki, Cabinda e Molembo. Tal projecto não era apenas contestado pela Bélgica; também a Grã-Bretanha, através da diplomacia de Palmerston, movera pressões tendentes a reduzir consideravelmente as ambições portuguesas. E elas só não foram mais longe porque a rainha Vitória temia as retaliações que poderiam ser suscitadas pela França, que se instalara ao norte do Zaire, e pela Alemanha, que pensava seriamente em consolidar a sua presença a sul de Angola (futuro Sudoeste Africano Alemão) e a norte de Moçambique (futura África Oriental Alemã).

Neste xadrez de interesses, sempre velado pela dialéctica perversa de promover o indigenato à “Civilização”, movimentava-se febrilmente um vasto grupo de comanditários e agentes internacionais, a soldo das potências interessadas. Alguns traziam roupetas de missionários, outros botas ferradas de caminheiros, ainda outros lupas e binóculos de botânicos e zoólogos, sendo certo que todos se encontravam mais ou menos comissionados pelos governos europeus correspondentes. A missão de quase todos eles consistia em aliciar os sobas e os chefes locais para a proclamada vantagem de celebrar acordos preferenciais de protectorado com esta ou aquela potência, ao mesmo tempo que se desqualificavam por todos os meios quaisquer outras alianças anteriormente firmadas, caso existissem.

Portugal apercebeu-se que os seus direitos na bacia do Zaire não deixariam de ser questionados e pretendeu alcançar, pelo menos, o consenso britânico. Por isso firmou com Londres, em 26 de Fevereiro de 1884, o chamado tratado do Zaire. As negociações tinham sido iniciadas por António de Serpa e concluídas por Barbosa du Bocage. Portugal comprometia-se a abrir à navegação o curso português dos rios Zaire e Zambeze, reconhecendo como válidos todos os tratados que os agentes britânicos haviam arrancado aos sobas; todavia, eram-lhe reconhecidos importantes direitos ao norte do Ambriz  e também homologados os seus limites fronteiriços na região congolesa.

As reacções, internas e internacionais, não se fizeram esperar. A opinião republicana logo sustentou que as cláusulas do tratado reproduziam o mesmo espírito de cedência e o mesmo reverencial temor que já maculara o tratado de Lourenço Marques. E também internacionalmente se fizeram ouvir vozes de protesto, vindas da Bélgica, França e Alemanha. Não se divisavam processos de regulação e de pacificação, no plano do direito internacional, que aplacassem iras, cobiças e ardentes brios nacionalistas dos governos europeus com “vocação colonialista”. Tudo isto se abonava, bem entendido, com o argumento dos “superiores interesses de África e das suas gentes” …    

26 de maio de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXI


XXI - ÁFRICA DIVIDIDA, ÁFRICA VIOLADA

A contradição da Europa industrial na segunda metade do século XIX entronca no paradoxo de uma produção em pleno crescimento, graças à eficácia de tecnologias cada vez mais apuradas, contraposta à vozearia dos famintos, alastrando como mancha de óleo, sem a menor capacidade económica para a aquisição dos excedentes produtivos. Os governos liberais europeus são colocados perante climas de contestação e de mal-estar social que se desenham sobre panos de fundo de evidente expansionismo produtivo. Mas a potencial prosperidade, oriunda deste acréscimo de bens mercantis, passa ao lado de incontáveis multidões, anémicas, miseráveis e destituídas de poder de compra. O comércio internacional refina as tendências de emulação entre os países produtores, resultando desta realidade o recurso a variados expedientes proteccionistas. Foram estes condicionalismos que impeliram tais governos à definição de políticas alternativas de emigração.

É certo que a África apareceu aos olhos dos europeus com o peso de reticências e de prevenções. Ao continente africano atribuíam-se perigos vários, tanto naturais como humanos. Compunham-lhe a imagem tanto as febres palustres como os gentios supostamente ferozes, tanto o rastejar das víboras como as garras das feras à solta. Foram necessárias as narrativas serenas e menos temíveis de missionários, geógrafos, garimpeiros, botânicos ou simples aventureiros para que essa imagem se viesse a revelar mais tranquilizante.

Entre 1840 e 1873, o missionário inglês David Livingstone deambulou pelo rio Zambeze, pelo lago Niassa e pela região do Tanganica e descobriu as nascentes do Congo. Por seu turno, a França colocou em 1881 a Tunísia sob o regime de protectorado e reforçou a sua presença colonialista no Daomé, na Costa do Marfim, no Senegal, na Mauritânia. Em relação ao centro equatorial africano, as ambições francesas eram interpretadas pelo conde Savorgnan de Brazza, um italiano que se naturalizara francês e que lançou os alicerces da futura cidade de Brazzaville. O monarca belga, Leopoldo II, começou por invocar os mais altos princípios filantrópicos, de combate ao esclavagismo, para lançar uma “Comissão de Estudos do Alto Congo”, organização que acabaria por se revelar mais vocacionada para lançar as bases do futuro Congo Belga do que para lutar pela causa da emancipação negra. O rei dos belgas contou com a cooperação do jornalista americano Stanley, o qual não se limitou a fazer-lhe a apologia pessoal e ideológica mas, replicando a Brazza, veio a fundar, em 1881, na margem esquerda do Zaire, frente a Brazaville, a estação-entreposto de Leopoldville. A Alemanha de Bismarck irrompeu mais tardiamente no continente africano, levada pela mão de companhias privadas, às quais se concederam direitos majestáticos. Só em Abril de 1883 Lüderitz se implantará nos territórios de que iria nascer o futuro Sudoeste Africano Alemão, ao passo que a colónia da África Oriental Alemã se iria forjar a partir da ilha de Zanzibar. Por seu turno, a Grã Bretanha já jogava, desde há muito, todo o seu peso estratégico não apenas no Egipto, onde disputou vitoriosamente à França a imposição do correspondente protectorado, como também na colónia do Cabo, na ponta meridional do continente, aí estabelecendo uma testa de ponte direccionada às regiões que haviam acolhido os estados boers.   

Pode assim dizer-se que o vinténio posterior a 1870 assistirá a uma desordenada “corrida à África” por parte de antigas e novas potências colonialistas, finalmente rendidas a promessas de fartura e a crises de cupidez sem paralelo, as quais, em incandescência progressiva, ganharam alento desde a descoberta dos diamantes de Kimberley, em 1867, à revelação dos filões auríferos do Transvaal, em 1885.

Portugal limitou-se a assistir, passivo e contemporizador, à erupção deste vulcanismo imperialista. Supunha, aliás, que os seus direitos históricos, comprováveis por vetustos testemunhos documentais e por sinais de edificação deixados ao longo da costa africana, seriam suficientes para preservar a secular herança das suas navegações. De resto, pouco poderia fazer. Os sucessivos governos nascidos da revolução regeneradora de 1851, tiveram o condão de desenvolver um pouco mais o Reino, mas à custa de um insustentável endividamento externo. Regara-se o país a libras esterlinas, mas a potência credora – a Grã-Bretanha – não se distinguia no concerto internacional por generosidades pecuniárias ou por transigências dilatórias na cobrança dos débitos. O que se poderia pressentir era que Portugal não resistiria a desafios de aprofundamento colonialista, se eles viessem a colocar-se. Poderia até haver vontade. Mas era seguro e certo que se trataria de uma vontade órfã de meios. Deste modo, o abalo da consciência republicana gerado pelo Tratado de Lourenço Marques poderia vir a repetir-se. E era de calcular que quanto maior viesse a ser o agravo, quanto maior pudesse ser a cedência, maior seria – sobretudo por parte dos republicanos – o desejo de desforra.    

21 de maio de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XX


XX - O TRICENTENÁRIO DE CAMÕES 

Algumas determinações vexatórias do Tratado de Lourenço Marques suscitaram junto do público uma reacção de grande desagrado. Temia-se pelo esfacelamento do império colonial português, às mãos gananciosas e implacáveis da Grã-Bretanha. Era necessário que alguma coisa de poderoso e de notável pudesse ocorrer para que o sentimento de desânimo, que lavrava entre nós, pudesse ser substituído por uma mais esperançosa crença no futuro da Pátria.

O Visconde de Juromenha, investigador laborioso e atento, descobrira num velho documento, compulsado na Torre do Tombo, que o Grão-Poeta Camões falecera em 10 de Junho de 1580. Assim sendo, a data de 10 de Junho de 1880 coincidia com o tricentenário da morte do eterno autor d’Os Lusíadas. Era tempo de evocar a memória do vate, atando à sombra da sua portentosa figura, num só feixe de crença e de esperança,  os brios do nosso Povo. Impunha-se que o porte altivo de Camões convertesse o abatimento em entusiasmo, a descrença em força de afirmação, a negatividade descoroçoada em projecto galvanizador de futuro.

No fim da primeira semana de Janeiro de 1880, Teófilo Braga, prestigiado professor do Curso Superior de Letras e reputado teórico do republicanismo, fez-se paladino da ideia do Tricentenário, escrevendo no Comércio de Portugal, de Sebastião de Magalhães Lima, um primeiro conjunto de três artigos, nos quais a ideia era ardentemente propugnada. Foi como se um rastilho tivesse pegado lume. Logo vieram à ribalta pública uma mão cheia de estudantes, publicistas, jornalistas, figuras institucionais e simples anónimos, afirmando, todos à uma, a sua solidariedade para com o desígnio proposto. Assim, fácil foi organizar, sob os auspícios de Luciano Cordeiro e da Sociedade de Geografia, uma comissão executiva de jornalistas e de escritores, aos quais foi cometido o encargo de planear as celebrações. Essa comissão congregava o melhor que Lisboa podia apresentar nos planos do saber e do desinteressado amor ao património lusitano. A presidência honorária foi entregue a António Rodrigues Sampaio, decano dos jornalistas portugueses. Mas lá se identificavam igualmente os nomes de Ramalho Ortigão, Jaime Batalha Reis, Manuel Pinheiro Chagas, Eduardo Coelho, Luciano Cordeiro, do Visconde de Juromenha e ainda de Sebastião de Magalhães Lima, Teófilo Braga e Rodrigues da Costa. Os estudantes logo quiseram juntar a sua própria estrutura organizativa a este considerável escol da intelectualidade do tempo. Mas os grupos afectos à governação e à administração da monarquia não se revelavam tão eufóricos. É que a figura de Teófilo Braga, primeiro defensor da ideia, era suspeita aos corrilhos do Paço. Aliás, a incumbência de fixar em definitivo o programa do Tricentenário impendera sobre Teófilo e também sobre Ramalho Ortigão. Ora, o muito conhecido autor d' As Farpas, com a pedagogia de contorno positivista que imprimira aos famosos caderninhos, também não reunia, por esta altura, especiais simpatias junto dos áulicos da realeza. A imprensa oficial tentou trivializar o evento. A Igreja alheou-se dele. A grande aristocracia e a burguesia opulenta deram-se a uma neutralidade postiça.

Chegou, finalmente, o aguardado dia 10 de Junho de 1880. Lisboa engalanou-se e fez-se moça. Um colorido cortejo cívico percorreu algumas das ruas da Baixa, com os seus carros alegóricos – da Agricultura, da Instrução, do Comércio, de diversas colectividades e agremiações e de distintos ramos de actividade – por entre a alegria esfuziante dos estudantes e o aplauso cúmplice dos populares, que aplaudiam a partir de passeios apinhados. Troava a artilharia sincopadamente, ao mesmo tempo que o estampido de foguetes, lançados a partir do Castelo de S. Jorge, espalhava nos céus pequenas nuvens de fumo. O préstito cívico iniciou a sua movimentação a partir do Terreiro do Paço, onde se encontrava instalado o pavilhão real. Mas junto dele as aclamações baixaram de tom. Houve bandeiras de colectividades que não se curvaram em saudação a D. Luís. E este, por sua vez, negligentemente, também não se dava ao esforço de corresponder às saudações, conversando e galhofando com amigos, ministros e Pares do Reino. Imperturbável, o cortejo coleou na direcção do Largo do Pelourinho, calcorreando as ruas Augusta, do Ouro e do Arsenal. Subiu depois a Rua Nova do Almada e irrompeu no Chiado, invadindo a simbólica Praça de Camões. E logo desceu a Rua do Alecrim, para se dissolver no Cais do Sodré.

O episódio deste latente divórcio entre as turbas populares e a monarquia foi imediatamente aproveitado pela propaganda republicana. Rafael Bordalo Pinheiro logo desenhou no seu O António Maria a figura de Camões, de cabeça coberta por um barrete frígio, agradecendo a um D. Luís contrafeito e minúsculo,  a honra de o ter feito republicano. Pela forma inábil como o regime vigente se comportou, o Tricentenário de Camões foi arvorado em símbolo por todos os que sonhavam com outros rumos, mais democráticos e benfazejos. A republicanização de Camões, ícone imorredoiro da Pátria portuguesa, significou, para muitos, o ponto de viragem para um outro e melhor destino. 

20 de maio de 2009

A CERTOS AMIGOS

Eu tenho dúzias de Amigos com os quais refresco a Alma e projecto o amanhã. Os Amigos são o que sobra do que nós temos de virtual – ou seja, eles são o que nós, dentro de nós próprios, identificamos como o melhor do mundo. Confesso, em contrição, que já não posso passar sem eles e que são eles que conferem aos anos que me faltam viver a graça, a alegria, a esperança do amanhã, a certeza do hoje e o esteio de sempre.

Para a realização de um projecto particular – que não vem ao caso particularizar, aqui e agora – tenho feito reuniões com alguns deles num sítio de digestão gástrica, sito em Coimbra, no Terreiro da Erva. Dá esse lugar pelo nome de “Cantinho do Reis”. É aí que todos nós fazemos reuniões jacobinas e de inequívoco travo republicano. É lá que encontro o General Augusto Monteiro Valente, com a valentia que fez dele um dos briosos e intemeratos Capitães de Abril, que ajudou a derribar uma das mais erráticas e carcomidas ditaduras da Oriental Praia. É aí que abraço o Carlos Esperança, versão restaurada de um Afonso Costa de travo anticlerical e de boutade pronta, capaz de fazer confessar a qualquer Divindade honesta o “touché” da estocada mortal. É nesse lugar que convivo com o cidadão Zé Dias, uma das almas mais sonhadoras que jamais me foi dado encontrar, ainda que queira esconder, num limbo de suposta eficácia pragmática, a sua mais íntima verdade, a mesma que resiste mal à contraprova da afectividade e ternura que ressuma da sua intrínseca autenticidade. Lá encontro também o Fernando Fava, um mocho sábio da teoria democrática e da reivindicação da Justiça Social, generoso e prestante, sem que tal comprometa a verticalidade de uma coluna vertebral que não cede nem cederá a quaisquer cantos de sereia. Nesse lugar partilho a refeição com uma Grande Senhora chamada Rosa Campos, alma de Artista, tentando esconder, no travo da Poesia que a envolve, o tesouro de sensibilidade e de elegância que faz dela uma notabilíssima Mulher e uma excepcional Cidadã. Por lá aparece também a Anabela Monteiro, uma “força da Natureza” da eficácia e do realismo, sumamente votada à solidariedade e à entreajuda, mulher notável que deveria ser, numa Democracia adulta (a milhas da que temos), uma incontestável leader do tecido social ou político. É também aí que aparece o meu querido Jorge Marques Loureiro, corredor da maratona dos afectos altruístas, campeão do que vale a pena, fundista do que é Bom e Belo.

 A todos eles quero eu manifestar o meu “muito obrigado!”, por ajudarem a realizar campanhas que me são caras, missões que me são indeclináveis, objectivos que me são irrenunciáveis. Acima de tudo, aceitem a minha gratidão pelo fácil reconhecimento de que tais campanhas, missões e objectivos são igualmente – e por inteiro – também vossos, em coincidência íntegra e total com as vossas belas almas de Cidadãos (e Cidadãs) do Mundo – e de Cidadãos (e Cidadãs) daqui.

Daqui, desta ponta de mar, deste resto de terra que ofereceu respaldo a Camões e ao Infante, a Antero e a João de Deus, a José Falcão e a Aquilino Ribeiro.

 O “Cantinho do Reis” é o nosso “Clube dos Povos”!  O Terreiro da Erva é o nosso doméstico Terreiro do Paço, sem ministros ventrudos e sem autoritarismos dispépticos.

 Obrigado! É bom, muito bom, saber que estamos unidos nas batalhas triviais do Presente e nos desafios insondáveis do Futuro. Um abraço!  

“ Saúde e Fraternidade! ”. Para sempre.

16 de maio de 2009

HISTÓRIA DE ÍNDIOS


Conta-se que um dia, numa tribo de peles-vermelhas, o velho chefe índio, vendo-se agonizante, chamou os seus cinco filhos varões, dizendo-lhes: - “Meus filhos, vou morrer. Cumpre-vos agora a vós cuidar dos destinos desta respeitável e antiquíssima comunidade de 1500 almas. Sei bem que tu, PSkvai, és um mariola, calculista e hipócrita. Pintas-te de rosa mas tens a alma ictérica. Guarda-te de colocar os sinais de fumo ao serviço de mensagens enganadoras, como até agora tens feito. Quanto a ti, PCkfoi, sempre revelaste uma tendência não reprimida para a auto-suficiência e para uma exemplaridade postiça, que está longe de corresponder à tua alma. Por isso, deixa de te considerar possuidor de toda a verdade e sê mais tolerante. Vem agora junto a mim, tu, CDSktem, e considera que a demagogia é sempre desmascarada, pois os índios são vermelhos mas não são parvos. Não simules amizade pelos pobres quando toda a tua intenção é cobrir de peles de bisonte os mais poderosos guerreiros desta tribo. E agora falarei para ti, meu filho BEkleva, para te dizer que esse teu jeito de descobrir causas minoritárias, como a do bem-estar das formigas larilas e a da conjugalidade dos ursos invertidos, casa mal com o teu nome e com aquilo que desejas para o teu futuro. Aproxima-te de mim também tu, meu filho PSDktraz, e decide por uma vez o que és, que fidelidades tens, o que representas e o que queres e não queres para o nosso povo. E, já agora, vê se escolhes quem possa tomar conta de ti, sem ser por empreitada temporária.

Depois desta arenga, o velho chefe expirou. Foi então que PSkvai, PCkfoi, CDSktem BEkleva e PSDktraz se reuniram em conclave para resolver como deveria ser gerida a tribo. Após longa discussão, foi decidido que os 1500 peles-vermelhas seriam chamados periodicamente ao terreiro central do acampamento para colocarem dentro de um bornal, colocado junto ao totem, uns papelinhos onde cada um escreveria o nome de um dos cinco filhos do finado, passando o mais escolhido a governar por períodos contados.

Foram feitas cinco consultas à tribo, nos vinte anos seguintes. Mas ao longo de todo esse tempo, PSkvai manteve um comportamento que o singularizava, mais do que nunca, como mariola, calculista e hipócrita, revelando a palidez do seu rosto que o vermelho da pele ia enfraquecendo progressivamente, por perda da identidade que tivera nos recuados tempos do saudoso chefe; por seu turno, o PCkfoi, confessando-se a favor “das mais amplas liberdades”, passou a distribuir socos e bofetadas a todos os seus oponentes, no decurso de manifestações de jovens índios em estado de apoplexia concentracionária, no fim das quais todo o mundo dizia que não vira nada e que “pedir desculpa, nem pensar” ; não foi muito outra a acção do CDSktem, o qual, para fingir solidariedade social, passou a esconder as manadas de cavalos puro-sangue, de arreatas presas nas traseiras da tenda, fazendo-se transportar, sobretudo nos calendários próximos das auscultações, em pilecas miseráveis, lazarentas, malcheirosas e a caírem de velhas e de podres; quanto ao BEkleva, continuou a pretender embasbacar a tribo com novas questões bizantinas, que nem ao diabo lembravam, como a dos direitos das térmitas a uma sexualidade desinibida e a da revelação completa da nudez das minhocas desde a alvorada ao sol-posto, tudo em nome de uma coisa que chamavam socialismo e que era esmiuçado em festins asiáticos, onde corria o vodka, felizmente sem laranja (este só é servido na Câmara Municipal de Coimbra), mas com um chulé intelectualóide indesmentível; o PSDktraz também não escapava a tão mofina sorte, dizendo hoje o que amanhã desdizia, arrastando-se em bailado patético e andando sempre a perguntar-se: “Será que sou liberal? serei, talvez, demo-liberal? ou antes, quiçá, democrata com tintas de social? ou até, eventualmente, social com pingos de democrata? Ora, ora, o que eu quero mesmo é que me não chateiem e me deixem arear os tachos”.

A tribo, reunida junto ao totem, foi votando, votando, e rosnando a sua insatisfação por tais e tão ordinários sevandijas. Na primeira eleição participaram 1482 peles-vermelhas; na segunda, 1050; na terceira, 480; na quarta, 35; e na quinta, 6 (os cinco filhos do velho chefe e o feiticeiro da tribo, que tinha sido ameaçado por eles de perder o lugar se não votasse). Contados os votos, verificou-se que havia um voto nulo, devido a um palavrão nele escarrapachado, e que cada filho (do defunto, bem entendido) angariara um voto. Todos se proclamaram vencedores, com uma nutrida e inteligente percentagem de votos.

Consta que a tribo acabou por pedir asilo político aos Mohicanos. Ficaram no acampamento os cinco filhos (do defunto, bem entendido) e o feiticeiro da tribo, que um dia apareceu enforcado no totem, com um papel por baixo, dizendo: “prostituta que os gerou”. Os filhos (do defunto, bem entendido) não perceberam a profundidade da mensagem. Eu também não …

13 de maio de 2009

CARTA A UM AMIGO



Meu Querido Professor João de Castro Nunes:

 A história conta-se em meia dúzia de linhas. Neste meu blog, que tem vindo a ser mais procurado do que nunca a partir do momento em que iniciei o “Memorial Republicano”, cometi um lapso, errando uma data por distracção. Uma leitora, atentíssima à minha produção, zeladora do meu bom nome profissional e entendida em datas, veio repor a correcta cronologia. E eu, reconhecendo o erro, aceitei e emendei. O meu Amigo, com o especial carinho que me tem demonstrado, veio dizer que a minha atitude revelava superioridade.

Depois disto, aconteceu uma deriva tragicómica. Um anónimo vem à liça derrancar-me. Diz que eu moro nas Alpenduradas e sou incompetente; alega que devo aprender com dois competentes Colegas meus, subitamente promovidos a santos. Insulta o meu sempre Respeitado Professor e chama-lhe goiesco, não sei se como homenagem a Goya, que ambos apreciamos, se como reverência a Góis, terra linda, álacre, risonha e campesina. E chama a terreiro o também meu muito querido Professor Alves de Fraga, completamente alheio ao diferendo vertente, alegando que só ele faltava ao hossana para que eu subisse ao Sétimo Céu da imerecida Fama, quando, verdadeiramente, por ter falhado uma data, deveria ser defenestrado para o Sétimo Círculo do Inferno de Dante (se é que ele existe).

Convenho e declaro, com toda a pompa e solenidade, que eu mereci toda a algazarra do anónimo foliculário: errar uma data em dois anos, mesmo por distracção, é uma hórrida, tenebrosa e insustentável coisa, para mais estando eu antecipadamente convicto de que esse campeão da exactitude, que tão rudemente imaginou interpelar-me, nunca errou coisa nenhuma, desde o troco ao padeiro ao preenchimento dos campos do IRS.

Mas quem não merecia nenhuma das insólitas e descompostas diatribes era o meu estimado, querido e respeitado Professor. Por isso aqui estou eu para lhe pedir desculpa, não em nome do homúnculo que o visou insultuosamente, mas em nome da Decência, inerente à Natureza Humana saudável e limpa, que ambos compartimos.

Por mim, estou pronto a confessar, de baraço ao pescoço, os meus perversos e hórridos crimes e as minhas imperdoáveis inépcias: é verdade que moro nas Alpenduradas; é verdade que corrigi em dois anos a data da Revolução de Setembro; é verdade que sou o administrador de um blog que vai a caminho das dez mil consultas; é verdade que já escrevi uma dezena de livros e que em alguns deles, seguramente, ocorrem imprecisões, que não soube evitar, ou até erradas interpretações, que não logrei suprimir; é verdade que o mesmo irá acontecer, a espaços, nos meus livros futuros; é verdade que fundei, com o activo concurso de antigos Alunos, uma associação cultural à qual se vincularam uma centena e meia de consócios e que tal organização dá pelo nome de ALTERNATIVA; é verdade que tenho Colegas que primam pela competência, senão mesmo pelo halo santificador; é verdade que João de Castro Nunes e Alves de Fraga são dois queridos Amigos, por mim muito apreciados, um pela excelência da Poesia que faz, o outro pela probidade da investigação histórica que produz; é verdade que, além destes, eu me vejo hoje cercado por largas dezenas de solidariedades e de amizades sólidas; é verdade que sou feliz, que estou satisfeito com o meu trabalho e com a minha imagem e me sei portador de muitas insuficiências, reconhecendo embora que também me assistem umas poucas de virtudes. E, a concluir, é sobretudo verdade que, dando o meu melhor em tudo o que ensino, em tudo o que escrevo, em tudo o que organizo, faço todas estas coisas com a perfeita consciência das minhas limitações.

Digo-lhe isto a si, porque lhe quero muito bem e porque um Homem que viveu como o Senhor, produzindo centenas de brilhantes versos, tendo ensinado várias gerações de estudantes e tendo a estatura humana que possui, merece a solidariedade activa deste réprobo.

Quanto ao mais, silêncio. Por mim, sempre evitei responder a almas latrinárias. Evito que os infinitamente pequenos possam promover-se com a minha réplica. E assim viverei, para o resto dos meus dias, de bem comigo e de bem com aqueles que venero, respeito e amo.

 Um abraço, meu querido Professor Castro Nunes. Um grande e fiel abraço do

 AMADEU CARVALHO HOMEM  

MEMORIAL REPUBLICANO XIX


XIX - SEBASTIÃO DE MAGALHÃES LIMA : DEMOCRATA, SOCIALISTA E PACIFISTA


Ainda estavam quentes as brasas emotivas que aqueceram a contestação ao tratado de Lourenço Marques quando surgiu em Lisboa um novo jornal, de risonho futuro. Intitulava-se O Século e nele iria ressoar, durante décadas a fio, a interpretação republicana dos acontecimentos nacionais e internacionais. Era dirigido por Sebastião de Magalhães Lima.

Quem era Magalhães Lima? Que créditos poderia apresentar perante a causa democrática? Nascera no Rio de Janeiro, no seio de uma família culta e abonada. Chegado à adolescência, atingida ao redor dos inícios do decénio de 60, os pais mandaram-no estudar para Lisboa, complementando os seus estudos intermédios com um sólido domínio das línguas francesa, inglesa e alemã. Quando arribou a Coimbra, para cursar Direito, ainda por lá vibravam as memórias e façanhas da notável geração de Antero de Quental, João Penha, Teófilo Braga, Eça de Queirós, João de Deus e Guerra Junqueiro. Além dos estudos jurídicos, necessários à progressão no curso, o jovem Sebastião de Magalhães Lima dava-se à literatura e ao debate panfletário das ideias. Versejou romanticamente, como tantos outros, sob o embalo das calmas águas do Mondego, correndo por entre choupos e salgueirais. Confessava-se então socialista e fez questão de manter essa identidade ideológica durante toda a sua existência. Contudo, o seu socialismo distanciava-se das apóstrofes de Karl Marx e de Engels, uma vez que repudiava toda e qualquer metodologia violenta e que considerava iníqua a luta colectiva sem quartel, alentada por meros egoísmos de classe. Reconhecia a “questão social” e procurava sinceramente a suavização da sorte madrasta dos pobres. Por isso se batia por um socialismo idealizado, ético, baseado no desenvolvimento dos imperativos das Consciências em alerta. As suas leituras deram-lhe a conhecer os textos de Benoit Malon, nos quais se procurava um caminho intermédio entre a impotência discursiva e utópica de um Fourier, de um Cabet ou de um Saint-Simon e a implacabilidade das dialécticas marxistas. Por aí, por Malon se viria a fixar, rendido e reverente perante o pensamento de um autor que antecipava um futuro de Paz e de Concórdia para a sofredora Humanidade.

Foi ainda em Coimbra que fundou com Alves da Veiga e Alves de Morais o periódico República Portuguesa, manifestando o seu radical laicismo e o seu acendrado credo democrático em textos como os que fez publicar sob os títulos Padres e Reis ou O Papa perante o século. Ainda estudante, merecera a honra de ser escolhido por José Falcão para saudar o prestigiadíssimo chefe do republicanismo espanhol, Emílio Castelar, quando este visitou a academia coimbrã.

Após a sua formatura, Sebastião de Magalhães Lima singularizar-se-á como um verdadeiro embaixador intelectual junto da Europa mais culta, como um dos maiores jornalistas do seu país e como um defensor intransigente do pacifismo e da negociação para a ultrapassagem de todos os contenciosos internacionais. A sua identificação com os ideais maçónicos correspondeu, pois, à evolução natural do seu espírito, chegando a atingir a culminância do Grão-Mestrado.

A sua voz ouvir-se-á em todos os momentos críticos da vida portuguesa. Em 1880, nas colunas do jornal O Século, travou uma enérgica campanha anti-britânica e anti-monárquica perante as cedências constantes do tratado de Lourenço Marques e empurrou a população lisboeta para os braços dos promotores do Tricentenário de Camões, momento alto de afirmação patriótica, volvido em solene manifestação pró-republicana pelo inepto distanciamento da realeza. Após o Ultimato inglês de 11 de Janeiro de 1890, iniciou um périplo por muitas das principais cidades europeias – como Madrid, Barcelona, Paris e Bruxelas – para defender as prerrogativas da colonização portuguesa ante a investida da “pérfida Albion”. Ao tornar-se uma referência de causas generosas e uma voz ao serviço da Justiça internacional, Sebastião de Magalhães Lima passou a ocupar lugares cimeiros nas mais relevantes organizações internacionais. Foi um dos fundadores da Associação dos Amigos da Paz, com sede em Paris. A Conferência Internacional Maçónica de Antuérpia recebeu-o, em 1894, com sinais de grande regozijo. Em 1898, rendendo preito ao seu combate em prol de soluções federalistas latinas, foi convidado pela Universidade Livre de Bruxelas a reger um curso sobre os fundamentos do federalismo. Passou por grandes congressos internacionais, reunidos no ano de 1904, como o da Imprensa, em Viena de Áustria, e o do Livre Pensamento, em Roma.

Mas foi empunhando a pena, como director ou redactor de jornais republicanos, que Sebastião de Magalhães Lima alcançou uma posição de especial destaque. Os seus artigos na Folha do Povo e na Vanguarda, após a sua saída do jornal O Século, dão-nos o testemunho de um espírito vigilante, determinado e arguto, mas sem rancores ou raivas escondidas. Ao lê-lo, ainda hoje é notório que ele apenas desejava uma Pátria livre e tolerante, digna dos portugueses, junto dos quais, apesar do clangor internacionalista do seu nome, queria viver como igual e como irmão.

6 de maio de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XVIII

Esta caricatura, de Rafael Bordalo Pinheiro, representa D. Luís-Laocoonte e os seus "filhos" Fontes e Braamcamp a serem martirizados pelas roscas das serpentes, figuração satírica das  dificuldades da época. Na perna esquerda do monarca o aperto remete para "Lourenço Marques", numa clara alusão ao escândalo do Tratado com esse nome.

XVIII - O Tratado de Lourenço Marques : antecedentes e consequências

Portugal, na sua demanda comercial africana, de início meramente costeira, instalara pelos finais do século XVI umas tantas palhotas na zona correspondente à baía de Lourenço Marques. Os indígenas davam o nome pomposo de feitorias a esses acampamentos improvisados. O lugar era aprazível e proporcionava um fácil acesso às zonas mais interiores, possibilitando um comércio muito lucrativo: alguns metros de tecidos baratos e coloridos, um punhado de missangas ou umas dezenas de litros de destilados alcoólicos eram permutados por marfim, âmbar, mel e mão-de-obra escrava. As vantagens estratégicas e económicas do lugar vieram a despertar cobiças por parte de outras potências colonizadoras europeias, de tal sorte que holandeses e ingleses, aproveitando a negligente e frequente omissão da presença lusa, passaram a disputar encarniçadamente as adjacências da baía, tentando firmar com os régulos da região acordos de protectorado, nomeadamente nas regiões de Temba e de Maputo. A Inglaterra, sob a férrea e puritana mão da rainha Vitória, viria a traçar, no decurso do século XIX, um arrojado programa de domínio colonialista, o qual, pelo que à África respeitava, assumia as proporções de um quase-monopólio. Esta imensa ambição, alargada ao tamanho de todo um continente, não poderia deixar de sofrer o confronto e a concorrência de outros intervenientes. Pelo que respeitava aos territórios africanos meridionais, os súbditos britânicos travaram uma longa disputa com os boers, descendentes dos antigos colonos holandeses da África do Sul, que lá se haviam instalado sob os auspícios da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Os boers, gente rija e indómita, salvaguardaram as suas notas de identidade, tanto em relação à língua como aos costumes e tradições. Contrariaram o mais que puderam os desejos hegemónicos britânicos, sobretudo nos anos cruciais que antecederam 1815, data em que a Holanda cedeu à Grã-Bretanha a colónia do Cabo. Contudo, a coexistência das duas populações viria a revelar-se tão conflituante que a colónia boer, sobretudo a partir de 1835, decidiu emigrar, na direcção do norte. Por aí vieram a florescer soberanias anglófobas, sob a forma de Estados livres e republicanos. Orange, o Natal e o Transvaal constituíram as provas insofismáveis deste espírito de resistência e deste formal desafio à monumental cupidez vitoriana. A partir desta situação, desenhar-se-á todo um jogo de provocações diplomáticas e militares e de ardidas emulações, mais protagonizadas pelas cobiças da chancelaria britânica do que pelas provocações boers. Estes novos Estados encontravam-se perfeitamente conscientes da sua impreparação para neutralizar o colosso inglês.

O domínio da região de Lourenço Marques era crucial para a Grã-Bretanha. Ela implicaria o completo isolamento dos estados boers, roubando-lhes a sua natural e única via de acesso ao mar. Mas os governos portugueses, para grande desgosto da “nossa mais antiga aliada” – designação oficial e pouco verosímil… – mantiveram com as novas nacionalidades de cepa holandesa uma relação de cordialidade, chegando ao ponto de com elas firmar convénios de mútua cooperação. Tais acordos apontavam para a construção de vias férreas que poderiam converter o porto de Lourenço Marques no acesso marítimo de excelência do Estado Livre de Orange e da República do Transvaal. Conhecedor destas disposições, a governação britânica visou Portugal com o fogo nutrido das suas objecções e reticências. Por outro lado, eram antigos os desígnios ingleses de se apoderarem de restingas costeiras e zonas adjacentes à povoação de Lourenço Marques, embora não fosse contestada a soberania portuguesa sobre o povoado. Em 1860, o vice-almirante britânico Keppel fizera uma demonstração de força em Delagoa Bay – nome pelo qual a região era designada em Inglaterra – aí  irrompendo com uma fragata de guerra. O assunto só ficou resolvido em 24 de Julho de 1875, quando uma sentença arbitral de Mac-Mahon, presidente da República francesa, reconheceu os direitos portugueses sobre os territórios em disputa. Manteve-se, contudo, a pressão inglesa. Para a atenuar, o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Andrade Corvo, acabaria por aceder à assinatura do tratado de Lourenço Marques. Negociado no decurso de 1878, as suas cláusulas foram conhecidas pela opinião pública em 1879. Tratava-se, verdadeiramente, de um pacto leonino. O que aí se dispunha configurava literalmente uma situação jurídica de condomínio e reduzia Portugal a um simples instrumento da estratégia britânica. Exagero? Tamanho era ele que o próprio Times escrevia que o tratado mais não era do que «uma cedência de Portugal à Inglaterra»! Os publicistas republicanos denunciaram o escândalo com a maior vivacidade. Teófilo Braga, escrevendo no jornal A Vanguarda, qualificava o acordo como «a página mais afrontosa da nossa história no século XIX». O nosso republicanismo voltou a ser, neste contexto, o defensor dos brios patrióticos e o depositário da honra de Portugal.