24 de maio de 2012

A MEMÓRIA

Lembras-te como caía a tarde junto ao rio // E como corria a água remansosa // Pela goteira aberta na memória ? // Era tempo de Verão, inflexível ardência // No vogar dos peixes, no verde velho da relva, // No peso incandescente da memória.// Quando o sol amarelo navegava pelo corpo // Das margens rumorosas // E quando tuas veias eram canais azuis // Perdidos nos finais da minha impaciência // A própria tarde declinava em tempo // E fervilhava a noite antes de acontecer.// E tudo me era dado e negado // No fundão profundo e imperfeito // Da memória.// PS - O "Blogger" não gosta de Poesia, não permitindo que os versos sejam apresentados separados. Assim, tive de me socorrer deste expediente de "sinalização" ...

21 de maio de 2012

MARCHA NA MARGINAL

O médico aconselhara-lhe a combater a hipertensão com a prática de actividade desportiva. Porém, era já muito evidente que lhe seria impossível esparramar-se numa bicicleta e pedalá-la energicamente; a natação também não lhe quadrava, pois apresentava danos micóticos nas unhas e isso envergonhava-o. Lembrou-se então de caminhar, de fazer marcha esforçada, enérgica. E como a cidade fosse marítima e possuísse uma longuíssima marginal, ele imaginou que acabava de descobrir a solução mais adequada. Aguardava os fins de tarde para tal efeito. Parava o automóvel onde calhava e cumpria escrupulosamente uma hora de marcha, dividida em dois blocos de trinta minutos, em sentidos inversos. Foi-lhe então possível reconhecer que os numerosos frequentadores dessa marginal resumiam a cidade com uma precisão quase fotográfica. Havia senhoras gordas a bambolear nas pernas curtas, anafadas, bufando como locomotivas; jovens longilíneas, loiras umas, outras nem tanto, de fatos de treino, garantindo ao corpo que nem um vestígio de adiposidade nele se instalaria; grupos de funcionários públicos a dizerem mal das chefias e a confundirem o ritmo das passadas; um casal recente, empurrando uma criança a dormir numa cadeira improvisada; frequentadores da ciclovia, alguns dos quais munidos com todos os adereços dos campeoníssimos; namorados desavindos, ele a forçar a passada e ela um pouco mais atrás, dizendo “vai mais devagar, meu pedaço de asno”; pescadores isolados, encarrapitados em rochedos costeiros, alheados de tudo o que não fosse o bulício provocado na linha pelo abocanhar do anzol; magotes de reformados, sentados no muro, todos a rirem muito, ou por causa do resfolegar da madame-locomotiva ou devido à face vermelhusca de um careca, que corria como se fosse um gamo; havia também um provocador profissional, que rosnava palavras feias, mais ou menos deste benévolo quilate “Comam mas é menos, seus cabrões”. O que o fidelizava era o cheiro salgado do vento marítimo, o jogo ambíguo de um sol-mostra-sol-esconde, nos dias de indomável nebulosidade e, finalmente, o espectáculo variável dos que acorriam à praia, rente às ondas, mesmo em fins de tarde, namoriscando o frio. Na quarta sessão aquilo começou a ficar menos sedutor. As senhoras gordas, as misses escorridas, os agentes administrativos certamente sindicalizados, os pares com nascituros enfiados em cadeiras com rodas, os ciclistas em exibição circense, os casais de namorados a vociferar misérias, os pescadores alheados de tudo, os reformados em compensações de anedotário, os calvos com o redondo do rosto tingido de vermelho, até mesmo o provocador em estado de fastio eram sempre os mesmos. E ele recordou uma frase que tinha decorado nos seus tempos de Universidade e que, salvo erro, fora proferida por um Humanista da Renascença italiana, que não necessitara de praticar a marcha energética para a declarar: “O Homem é uma besta cupidíssima por coisas novas”. Assim mesmo, mais ou menos, ou coisa que o valha.

17 de maio de 2012

AUTÓPSIA DE UMA GOVERNAÇÃO

Uma calamidade completa: o desemprego real ultrapassa em Portugal o milhão de pessoas! Isto acontece devido, fundamentalmente, ao ideário de ultra-liberalização dos que nos governam. Não há pior aconselhamento do que aquele que resulta de esquemas rígidos, pré-concebidos e moldados sobre realidades sociais e históricas diferentes da nossa. O governo português está entregue a estrangeirados, que imaginam que podem ser introduzidas entre nós, de supetão, as mesmas receitas que contribuíram, em certos momentos, para conferir prosperidade a países de capitalismo desenvolvido, com particular relevância para os Estados Unidos da América. Estes visionários da desgraça colocam o assunto nas baias da seguinte moldura lógica: abolido até à raiz o chamado “Estado Social”, colocados os cidadãos pelintras perante o mercado, eles teriam forçosamente de “criar a sua oportunidade”. Não mais função pública, não mais garantia de empregabilidade oficial, não mais sentimento de segurança. Assim sendo, cada um teria de se fazer empreendedor ou empresário, cada um seria dono e patrão de si mesmo, colhendo cada um o retorno do seu engenho e da sua capacidade de investimento. Foi isto, pensa Coelho e os seus apaniguados, que fomentou a riqueza das regiões de além-Atlântico. O primeiro-ministro sonha com um Hill Street em Lisboa e com um imenso florescimento da iniciativa privada um pouco por todo o lado. Ora, a rotura que este governo pretende fazer não é apenas o resultado de um mecanicismo mental completamente à margem da realidade e das tradições portuguesas. É uma perigosa miragem e um embuste, seja este deliberado ou não. Portugal não é um país prenhe de recursos, nem sequer apresenta um espaço geográfico imenso e pronto a ser desbravado por garimpeiros ou vendedores de ferraduras para cavalos. Portugal é (já o disse uma vez) um país adornado no sentido do litoral e completamente exausto e abandonado nas suas regiões de interior. E estas são de uma pobreza e de uma escassez de recursos que apertam o coração de todos os que ainda o sintam bater. Ora, não havendo recursos, não poderão existir oportunidades de iniciativa ou horizontes de investimento. Foi por ter sido assim, que as passadas governações, mesmo as da Primeira República, fizeram do nosso país um território de funcionários públicos. Não foi isto determinado pelo facto de se reconhecer que não existiam nos portugueses os genes da “capacidade industrial e industriosa”. Nada disto! Foi assim porque esta Pátria pouco tinha para oferecer, além dos frutos do mar, laboriosamente colhidos por pescadores, e dos frutos da terra, semeados e guardados pelo suor dos lavradores. E Portugal pôde ser o que foi com base em três esteios proverbiais: funcionários públicos, pescadores e agricultores. Veio a Europa e roubou-nos a pesca e a agricultura. Ficaram os funcionários públicos. Depois, veio o Coelho e decidiu, do alto do seu dogmatismo neo-liberal, que o País deveria ser, custasse o que custasse, uma desfocada imagem dos Estados Unidos da América ou talvez do Canadá. E começou a grande montaria ao funcionário público e depois ao trabalhador que tivesse alguma garantia de estabilidade profissional. O Coelho tinha de criar um espécime português novo, que mastigasse pastilha elástica, vagueasse no desencantado território, de um lado para o outro, encarasse com nojo a função pública e estivesse convicto de que a riqueza estava já ali, à mão de semear da sua voluntária iniciativa. Mas Portugal permaneceu. Permaneceu não igual, mas pior. Pior no seu abatimento, pior na sua desertificação, pior no seu desencanto, pior na avareza dos recursos inexistentes. O Coelho é que não desistiu, não desiste, não desistirá. O Coelho persiste em fazer coincidir este pobre Portugal exausto com o delírio da sua imaginação exaltada e doente. O Coelho já atirou para a valeta da vida com milhares de famílias. Deixem-no ficar e ele poderá ser o governante da pastilha elástica, cercado de andrajosos por todos os lados menos por um: o da gente que o bajula, simulando com ele concordar.

13 de maio de 2012

TAPADA DE MAFRA

Era a Mãe que lhe dizia : - “Olha para cima, filho, olha para cima!”. Aquilo que ficava “em cima” não era (ou não era só …) o estatuto do Senhor Doutor, título invejado numa família de pequenos burgueses funcionários públicos. O que estava em causa era uma panóplia de Valores e de Sublimidades, que se reportava, talvez por crença católica profunda, às regiões celestiais. Igual comportamento – ou quase igual – era o do Capitão Mendes, que ele encontrou na tropa. Esse também afirmava, com voz de trovão e face apopléctica: “Suas merdas, seus meninos copos-de-leite, seus sacos de ventos malcheirosos, então vocês não sabem, suas bestas, que o que conta é o “recheio”? Este “recheio” era a Vontade, o repositório de forças anímicas que os haveriam de obrigar a refocilar na trampa e a agradecer de seguida aos céus a ventura do manejo de arma e dos crosses infindáveis, feitos na Tapada de Mafra, ao som histérico da voz do furriel e ao calor do exemplo implacável do “meu Tenente”. Mas o Capitão Mendes soprava mais directivas : “ Olhem lá, suas donzelas de tricot, vocês julgam que o coirão serve para alguma coisa senão para rebentar de sofrimento? Vocês já se capacitaram que estão aqui estão na guerra, seus guerrilheiros de chocolate? E quando vos zunirem as balas nas orelhas, suas Amélias apaneleiradas, que é que vão dizer ao inimigo? Oh, inimigo, ferra-me um tiro no toutiço, que eu estou muito cansado e já não posso correr mais? É isto que querem? Seus frangos de aviário, é mesmo isto que desejam? “. Na altura, ninguém se atrevia a duvidar que a superioridade do “recheio” – fosse lá isso o que fosse – era um “quid” incontestável, tão incontestável que foi mesmo em seu nome que a fragilidade tímida do Martins acabou por fazer fractura exposta numa das pernas, só porque, cheio de vertigens, se desequilibrou do “pórtico” e malhou com o costado no duro chão do adestramento. Foi por isso que ele se julgou predestinado, quase prestes a ir para padre depois da tropa, só porque a Mãe, o furriel, o “meu Tenente” e o Capitão Mendes lhe haviam interiorizado a crença da superioridade do “recheio” sobre as materialistas e quebradiças concessões que a matéria corpórea faz a si mesma. A crise de consciência veio depois. E esse depois coincidiu com a observação dos estrumes que se colocavam nos campos, para que as plantas se pudessem nutrir e trepar, gloriosas, acima das ervas mais rasteiras. E mais: reforçou-se quando ele descobriu, maravilhado e irremediavelmente sem jeito, que não precisava de grande “recheio” para fazer vibrar o corpo masculino, ao contacto do seio rijo das moças, e que um filho se fazia sem qualquer necessidade da mística idealista. Claro que acabou por não ir para padre.

4 de maio de 2012

UMA ÁRVORE E UM RIO

Já não nos víamos há uns trinta anos ou mais. Nos tempos em que tínhamos frequentado juntos o colégio, formara-se entre nós a cumplicidade que tantas vezes une as falsas virtudes aos vícios menores. O tempo que se vivia era o do Estado Novo. Havia padrões para tudo e alguns rigorosíssimos, pois o colégio era misto, ou seja, frequentado por machos e fêmeas jovens. Os primeiros dirigiam àquelas, do recreio, olhares cobiçosos mas absolutamente inconsequentes. Porém, a própria dificuldade do contacto – tantas vezes até do contacto visual – alimentava prodígios de romantismos, carpidos a suspirar e a perguntar como poderiam os tabus ser iludidos. Aquele colega, que eu encontrei e já não via há trinta anos, ou mais, ficara-me na lembrança porque trazia sempre consigo a rijeza da sua aldeia de naturalidade e nada entendia dos meus transportes românticos : « Hoje não estás nos teus dias, pois não? Menino, não te falta nada. O que tu estás mesmo a precisar é uma enxada nas unhas, igual à que o meu pai ontem me fez usar . Menino de leite, é o que tu és. Nem te percebo, pá. Olha, vou fumas esta pirisca ali atrás da capela ». E ia, deixando-me abandonado á imaginação do “e se … “ e à imprecação da “merda de vida”... Só se entende o que se partilha. Afinal, em pleno Estado Novo, que cumplicidades haveria a partilhar entre um estudante de cepa completamente rural – ele – e um outro de extracção predominantemente urbana, como eu? Talvez o cigarro, talvez. Acontecia, porém , que nessa altura eu ainda não “fumegava”. Era só o coração que batia mais descompassado por certa L., ainda por cima mais velha, e muito mais esquiva do que o meu colega fumante. Encontrámo-nos naquela situação de hiato interposto, que mal permite discernir, em muitos casos, os rostos outrora familiares. « Olha lá, não me digas que és o X » , «Pois sou, tu deves ser o Y ». E depois, enquanto o coração navegava entre o rochedo da Cila da angústia e a penedia da Caribdes da compaixão – angústia pelo que poderíamos ter sido, compaixão por nos vermos já tão tarde - , instalava-se em nós (pelo menos em mim) um desejo imenso de parar o tempo e de regressar ao velho colégio, onde era quase proibido namorar e seguramente interdito o fumegar, que é a forma mais fácil de adiar o coração. Foi então que o tal colega, agora de porte distinto e de fácil desembaraço, me pega no brao, dizendo : «Eu devo-te desculpas, pá. Devo mesmo. Olha, desculpa lá aquilo». Fiquei estático, a procurar nas sombras do passado ou nas proximidades do ontem o que era «aquilo». Logo depois, dei comigo a contemplar o rio, que rasava o hotel onde almoçámos, e a figurar numa árvore-chorão que bordejava a margem, o fluxo do que de nós passa, como uma torrente, e do que de nós chora, como uma árvore em risco.