4 de maio de 2012

UMA ÁRVORE E UM RIO

Já não nos víamos há uns trinta anos ou mais. Nos tempos em que tínhamos frequentado juntos o colégio, formara-se entre nós a cumplicidade que tantas vezes une as falsas virtudes aos vícios menores. O tempo que se vivia era o do Estado Novo. Havia padrões para tudo e alguns rigorosíssimos, pois o colégio era misto, ou seja, frequentado por machos e fêmeas jovens. Os primeiros dirigiam àquelas, do recreio, olhares cobiçosos mas absolutamente inconsequentes. Porém, a própria dificuldade do contacto – tantas vezes até do contacto visual – alimentava prodígios de romantismos, carpidos a suspirar e a perguntar como poderiam os tabus ser iludidos. Aquele colega, que eu encontrei e já não via há trinta anos, ou mais, ficara-me na lembrança porque trazia sempre consigo a rijeza da sua aldeia de naturalidade e nada entendia dos meus transportes românticos : « Hoje não estás nos teus dias, pois não? Menino, não te falta nada. O que tu estás mesmo a precisar é uma enxada nas unhas, igual à que o meu pai ontem me fez usar . Menino de leite, é o que tu és. Nem te percebo, pá. Olha, vou fumas esta pirisca ali atrás da capela ». E ia, deixando-me abandonado á imaginação do “e se … “ e à imprecação da “merda de vida”... Só se entende o que se partilha. Afinal, em pleno Estado Novo, que cumplicidades haveria a partilhar entre um estudante de cepa completamente rural – ele – e um outro de extracção predominantemente urbana, como eu? Talvez o cigarro, talvez. Acontecia, porém , que nessa altura eu ainda não “fumegava”. Era só o coração que batia mais descompassado por certa L., ainda por cima mais velha, e muito mais esquiva do que o meu colega fumante. Encontrámo-nos naquela situação de hiato interposto, que mal permite discernir, em muitos casos, os rostos outrora familiares. « Olha lá, não me digas que és o X » , «Pois sou, tu deves ser o Y ». E depois, enquanto o coração navegava entre o rochedo da Cila da angústia e a penedia da Caribdes da compaixão – angústia pelo que poderíamos ter sido, compaixão por nos vermos já tão tarde - , instalava-se em nós (pelo menos em mim) um desejo imenso de parar o tempo e de regressar ao velho colégio, onde era quase proibido namorar e seguramente interdito o fumegar, que é a forma mais fácil de adiar o coração. Foi então que o tal colega, agora de porte distinto e de fácil desembaraço, me pega no brao, dizendo : «Eu devo-te desculpas, pá. Devo mesmo. Olha, desculpa lá aquilo». Fiquei estático, a procurar nas sombras do passado ou nas proximidades do ontem o que era «aquilo». Logo depois, dei comigo a contemplar o rio, que rasava o hotel onde almoçámos, e a figurar numa árvore-chorão que bordejava a margem, o fluxo do que de nós passa, como uma torrente, e do que de nós chora, como uma árvore em risco.

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