21 de maio de 2012

MARCHA NA MARGINAL

O médico aconselhara-lhe a combater a hipertensão com a prática de actividade desportiva. Porém, era já muito evidente que lhe seria impossível esparramar-se numa bicicleta e pedalá-la energicamente; a natação também não lhe quadrava, pois apresentava danos micóticos nas unhas e isso envergonhava-o. Lembrou-se então de caminhar, de fazer marcha esforçada, enérgica. E como a cidade fosse marítima e possuísse uma longuíssima marginal, ele imaginou que acabava de descobrir a solução mais adequada. Aguardava os fins de tarde para tal efeito. Parava o automóvel onde calhava e cumpria escrupulosamente uma hora de marcha, dividida em dois blocos de trinta minutos, em sentidos inversos. Foi-lhe então possível reconhecer que os numerosos frequentadores dessa marginal resumiam a cidade com uma precisão quase fotográfica. Havia senhoras gordas a bambolear nas pernas curtas, anafadas, bufando como locomotivas; jovens longilíneas, loiras umas, outras nem tanto, de fatos de treino, garantindo ao corpo que nem um vestígio de adiposidade nele se instalaria; grupos de funcionários públicos a dizerem mal das chefias e a confundirem o ritmo das passadas; um casal recente, empurrando uma criança a dormir numa cadeira improvisada; frequentadores da ciclovia, alguns dos quais munidos com todos os adereços dos campeoníssimos; namorados desavindos, ele a forçar a passada e ela um pouco mais atrás, dizendo “vai mais devagar, meu pedaço de asno”; pescadores isolados, encarrapitados em rochedos costeiros, alheados de tudo o que não fosse o bulício provocado na linha pelo abocanhar do anzol; magotes de reformados, sentados no muro, todos a rirem muito, ou por causa do resfolegar da madame-locomotiva ou devido à face vermelhusca de um careca, que corria como se fosse um gamo; havia também um provocador profissional, que rosnava palavras feias, mais ou menos deste benévolo quilate “Comam mas é menos, seus cabrões”. O que o fidelizava era o cheiro salgado do vento marítimo, o jogo ambíguo de um sol-mostra-sol-esconde, nos dias de indomável nebulosidade e, finalmente, o espectáculo variável dos que acorriam à praia, rente às ondas, mesmo em fins de tarde, namoriscando o frio. Na quarta sessão aquilo começou a ficar menos sedutor. As senhoras gordas, as misses escorridas, os agentes administrativos certamente sindicalizados, os pares com nascituros enfiados em cadeiras com rodas, os ciclistas em exibição circense, os casais de namorados a vociferar misérias, os pescadores alheados de tudo, os reformados em compensações de anedotário, os calvos com o redondo do rosto tingido de vermelho, até mesmo o provocador em estado de fastio eram sempre os mesmos. E ele recordou uma frase que tinha decorado nos seus tempos de Universidade e que, salvo erro, fora proferida por um Humanista da Renascença italiana, que não necessitara de praticar a marcha energética para a declarar: “O Homem é uma besta cupidíssima por coisas novas”. Assim mesmo, mais ou menos, ou coisa que o valha.

Sem comentários: