27 de abril de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO XLVII

XLVII - DISSÍDIOS ...


Os republicanos mais avisados sempre tiveram João Franco na conta de um déspota ambicioso e calculista. Mas talvez não previssem o arcaboiço da sua arteira demagogia e talvez não imaginassem a requintada desfaçatez da sua hipocrisia. Quando saiu finalmente no governo, como segunda figura do interregno ditatorial que avassalou Portugal entre 1894 e 1897, fez questão de garantir ao seu amigo José de Azevedo Castelo Branco que regressaria a um futuro gabinete como chefe de governo. Logo então se desenhava a falta de honorabilidade da sua palavra, uma vez que tal só poderia vir a ocorrer se Hintze Ribeiro, que o guindara ao lugar proeminente que acabara de ocupar, se visse atacado na sua chefia e subalternizado no seu estatuto hierárquico. Os desígnios de João Franco ocultavam o veneno da traição e, analisadas as suas afirmações, não é lícito duvidar da sua alma trapaceira. Primeiro, simulou diferenças de opinião com Hintze, chefe do Partido Regenerador, como se não tivesse sido o seu braço direito e o fiel executante dos objectivos ditatoriais em que ambos se empenharam. Encenou depois um grosseiro espectáculo de campónio manhoso, lançando farpas à esquerda e à direita, apresentando-se como a virgem ofendida de um puritanismo político que quadrava mal à velhacaria do seu carácter e bradando que Portugal, com o seu sistema eleitoral rotativo, “não poderia continuar a ser o ludíbrio de regeneradores e de progressistas”. Escrevera o livro ignominioso da perseguição e da tirania e agora, porque lhe convinha, empenhava-se em apresentar essa obra como saída de uma ignota e anónima autoria. Abandonou o Partido Regenerador, que sempre fora o seu, levando a reboque uma pequena patrulha de deputados.

Confrontado com a rebelião do seu antigo delfim, Hintze Ribeiro também não soube comportar-se com a dignidade que o momento exigia. Para não sofrer as arremetidas parlamentares de personalidades que tinham estado sob a sua tutoria política, dissolveu a Câmara dos Deputados e cerziu uma nova disciplina eleitoral que retirava aos republicanos e aos franquistas todas as veleidades de poderem ver triunfar candidaturas suas. João Franco descarregou sobre essa lei, de 8 de Agosto de 1901, o seu indomável furor – neste caso justo – e designou-a por “ignóbil porcaria”. Tal baptismo não iria ser esquecido no futuro próximo, até porque a opinião pública adoptou imediatamente a deselegante expressão. Alguns republicanos ficaram intrigados com os inflamados discursos do estudante que em Coimbra perseguira gatos e caloiros por noites vingativas. As denúncias dirigidas ao regime repetiam um ou outro aspecto das reivindicações democráticas e nem todos viram nelas a manobra estudada de um homem sem escrúpulos. Em 16 de Maio de 1903, João Franco inaugurou o primeiro Centro Regenerador Liberal, tornando irreversível a cisão que pacientemente engendrara.

Também o Partido Progressista viveu um episódio similar. O chefe dos progressistas era o alquebrado José Luciano de Castro, minado pelos anos e por maleitas plurais que o amarravam frequentemente a uma cadeira de rodas. Os apaniguados do seu grémio deslocavam-se expressamente ao palácio daquele mentor, à Rua dos Navegantes, recebendo aí as directrizes que lhes eram transmitidas por esse incapacitado ancião. De manta sobre os joelhos, acariciando a pelagem do gato favorito, que se lhe aninhava no colo, José Luciano perseverava numa chefia política para a qual já não dispunha de condição física viável. Um dos seus “marechais” era José de Alpoim, figura falsamente imponente na adiposidade do imenso corpanzil e na fingida severidade do duplo queixo. Tinha sido despachado para a Corte inglesa por alturas do pós-Ultimato, com a missão de reduzir ao mínimo a amplitude do vexame. Não se saiu dessa tarefa bem nem mal, pela razão simples de não se poder esvaziar os mares da afronta com a colher de chá da mais crassa inépcia diplomática. Por lá se arrastou como pôde. Fialho de Almeida, na sua ácida colectânea d’Os Gatos, sovou-o com uma das análises mais inclementes que algum dia se abateram sobre as nulidades da coetânea galeria constitucional. Alpoim era, com efeito, uma tonitruante figura de comédia bufa. Senhor de um perfil maciço e de um linguajar de rufia de viela suja, deu-se a julgar que daí lhe advinham provadas capacidades de comando. E como ainda se ia aguentando nas pernas balofas, sonhou que poderia arrasar o velhote da cadeira de rodas e do gato no regaço, herdando-lhe, talvez, a chefatura política. Era, uma vez mais, a comprovação da deslealdade, dado que Alpoim fora feito ministro da Justiça pelo habitante do Palácio dos Navegantes, no gabinete a que presidira, em 1904. Esta outra dissidência cumpriu-se em pleno parlamento, em Maio de 1905, quando nele se apreciava o concurso para a renovação do monopólio dos tabacos.

Não há palavras mais adequadas e brilhantes do que as de João Chagas para caracterizar o momento político após a consumação das duas dissidências e as consequências inevitáveis daí resultantes. Ouçamo-lo, pois, numa das suas magníficas Cartas Políticas: “A ficção da opinião pública em Portugal estava organizada pelo Estado para votar em progressistas e regeneradores, e não se compreendia parlamento português onde estes dois partidos não estivessem nitidamente representados – progressistas no governo, regeneradores na oposição, ou vice-versa. A entrada na cena política de regeneradores que não eram regeneradores (João Franco) e de progressistas que não eram progressistas (José d’Alpoim) dividiu a tal ponto o parlamento que não há governo que possa governar com ele, e este é o aspecto mais grave, mais urgente da crise monárquica, crise sem solução, porquanto sem partidos, a monarquia não pode governar com o parlamento, e sem o parlamento não pode governar mais um dia com o país”.

25 de abril de 2010

APESAR DE TUDO ...


Apesar de tudo o que tenho a censurar-te
apesar de tudo o que foste, reticência do belo
sem tornares a ser...
Apesar do gosto a mel volvido em agridoce
Apesar do sonho que prometeste
e roubaste sem pudor
Apesar da glória aberta em flor
transformada em dor
Apesar do que um dia te murmurei
em casta confissão
Apesar do que ficou vazio
na suplicante mão
Apesar do Povo em delírio
que não resgataste
Apesar do cravo em martírio
que não entendeste
Apesar de ti que não escutaste
Apesar de mim que não te dei razão
Apesar de todas as bocas abertas em confissão
Apesar de todas as preces laicas em silêncios mil
Apesar de tudo e contra todos
Se preciso for
Vem até nós, oh rutilante Abril
E seja a minha voz a sombra da Verdade
E seja o meu cuidado a luz dessa Saudade
E seja o meu destino
O fiapo do hino
Que ficou por cantar
Abril e sempre Abril
Oh terra de Bondade
Abril e sempre Abril
Oh ramo d'ansiedade
Como o da noiva perplexa por cumprir
Como o da criança reflexa por nascer
Abril abriu-se por dores desconhecidas
Abril viveu-se em casas destruídas
E apesar do silêncio por dizer
Abril é nosso no íntimo do peito
Para poder dizer que chegará um dia
Que um dia chegará para ficar
Como aquele canto de melro ou cotovia
Que cada Primavera quer guardar.

21 de abril de 2010

PELO VOTO REBELDE


Uma organização, uma associação, uma qualquer agremiação não vale, não inspira confiança, não persuade pela bandeira que ostenta ou pelas palavras de ordem que pretende inculcar. Vale, isso sim, pela credibilidade dos seus associados e pelo indesmentível espírito de serviço das suas lideranças. A questão das chefias tornou-se vital e verdadeiramente decisiva no Portugal de hoje. É agora transparente que um partido político se torna mais cobiçável pela honorabilidade do seu elenco dirigente do que pelas parangonas superlativas do seu programa. A questão está toda nisto: um programa excelente, servido por meia dúzia de sacripantas, facilmente se converte numa cartilha de embuste. Pelo contrário, um programa aparentemente menos convincente, servido por meia dúzia de homens-de-bem, rapidamente revela a excelência de quem o executa.

O que aqui se defende, sem o viés da meia-palavra, é a teoria do voto rebelde. Todos sabemos que o cidadão comum é tão fiel à sua palavra política como fanático se confessa do seu emblema desportivo. Por défice de reflexão e por imperativo de passionalidade, o português votante parte para a urna eleitoral com a mesma cegueira proselítica com que o adepto de futebol parte para o estádio onde joga a equipa do seu coração. Daí que o eleitorado revele tendências uniformes e de mais do que média duração. Desconhece-se quase completamente o programa ideológico mas reconhecem-se os símbolos e cores da bandeira do partido. O que hoje venho defender é que a política portuguesa, na sua dimensão autárquica e nacional, deixe de gerir-se pela polaridade similar à de um Benfica-Porto …

Os últimos decénios forneceram-nos óptimos motivos de reflexão. Não basta consignar em discursos inflamados as virtudes da Justiça Social para que deixe de haver corruptos. Não chega a notação programática da ideia de solidariedade para que desapareçam os oportunistas do mais decantado egoísmo pessoal. Não é suficiente que se fale em Bem Comum para que se dissolvam as trevas do tráfico de influências, do compadrio, do jogo obscuro da troca de favores, do negócio escuso e pulha. É mais do que tempo para que o eleitorado comece a retirar de todo este estendal de misérias crápulas as suas conclusões. Não é crível que se mantenham fidelidades de voto quando os servidores de certa bandeira – por mais estética ou cromaticamente agradável que se nos antolhe – já deram reiteradas provas de indigerível préstimo político, social e ético.

Por isso, é meu desígnio que os Cidadãos portugueses passem do abstracto das grandes tiradas oratórias para a observação de coisas mais palpáveis e singulares. Habitualmente, os candidatos ao exercício de cargos oficiais, públicos ou partidários, sejam eles quais forem, são publicamente conhecidos e reconhecidos. Seguimos-lhes os perfis particulares sem a necessidade de os procurar no “Facebook”. Escrevem-se sobre eles diversíssimos depoimentos na imprensa. Eles próprios utilizam as folhas dos periódicos para nelas consignarem os seus estados de alma. Aparecem nos restaurantes que nós frequentamos, nos cafés da nossa habituação, por vezes mesmo nas tertúlias da nossa predilecção. Ou seja, há farta matéria para que cada um possa retirar sobre eles as mais sólidas conclusões: sobre a consistência do carácter, sobre a solidez da cultura, sobre a autenticidade dos valores que dizem defender, sobre a dignidade do comportamento cívico, sobre o desinteresse que deve ser sempre inerente ao serviço da Colectividade.

Há que libertar o eleitorado português da camisa-de-forças do voto sonolento, habitual, bovino, agrilhoado à sujeição quase idiota com que idolatramos o trilho dos hábitos. Cultivemos, pois, o voto rebelde. Dentro dos partidos e fora deles. Em eleições internas e em eleições nacionais. Informemo-nos de todas as particularidades que singularizam, sem devassa mas igualmente sem sujeição mecanicista, o candidato ou candidatos em apreço. E que sejam apenas OS MELHORES, longe de canina fidelidade a cores e símbolos estafados, os depositários da nossa confiança. E, sobretudo, da nossa esperança! Bem precisamos …

15 de abril de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO XLVI


XLVI - JOÃO FRANCO, O NEFASTO

Não foi por acaso que certa opinião pública adversa brindou João Ferreira Franco Pinto Castelo-Branco com um depreciativo epíteto: o Isca Ardente ou Isca a arder. De face miúda, com tendência para revelar um ligeiro prognatismo, a regularidade das suas feições, sublinhadas por um bigode petulante, consentia o vislumbre de uma interioridade psicológica à tona da qual flutuavam torvelinhos de vaidade. Contavam-se episódios pouco abonatórios do seu tempo de estudante de Coimbra. Perseguia e matava gatos à cacetada; e sempre que organizava, à sombra da praxe académica, expedições de punição contra estudantes caloiros, os seus colegas ouviam-no declarar, como um duque renascentista ofendido: “Vamo-nos a uma noite de despotismo!”.

Como ministro da Fazenda do gabinete regenerador de Serpa Pimentel, organizado no primeiro turbilhão do Ultimato, aprendeu com Lopo Vaz, seu colega na pasta do Reino, os processos mais eficazes para cercear as garantias e os direitos constitucionais dos cidadãos e sobretudo para quebrar o protesto das oposições. Iniciou também aí o tirocínio da manobra política e da conspiração surda. João Franco irá aliar-se a Hintze Ribeiro, um outro ambicioso político regenerador, para minar e enfraquecer a chefia de Pimentel e para preparar a sua próxima queda e a sua definitiva desqualificação. Em consequência destes jogos florentinos, que tiveram a cumplicidade ou pelo menos a simpatia do rei D. Carlos, quando a próxima situação regeneradora se constituiu, ela já não teve a égide do defraudado Serpa Pimentel, mas orquestrou-se sob a batuta de Hintze Ribeiro, numa nunciatura premonitória de potencial Papa novo… João Franco recebeu das mãos de Hintze, no gabinete de 1893-1897, a mesma pasta do Reino que dera origem à “lenda negra” de Lopo Vaz; e, tal como ele, viria a desempenhá-la com o mesmíssimo desprezo pela dignidade cívica dos seus concidadãos. Os actos eleitorais passaram a ser sistematicamente adiados e as regras do sufrágio foram revistas de modo a convertê-lo num embuste grosseiro. Realizadas as eleições já sob a nova e crapulosa disciplina, em Novembro de 1895, as oposições recusaram-se a colaborar nessa farsa e constituiu-se, com uma chusma de “Conselheiros Acácios regeneradores”, o famigerado e mais do que ridículo Solar dos Barrigas. Bastou também que em Lisboa um pobre demente, internado em Rilhafoles, tivesse apedrejado a carruagem real e que uma bomba tivesse explodido, sem consequências físicas, num vão de escada de Lisboa, para que o governo aprovasse, em Fevereiro de 1896, uma “lei anti-anarquista” , logo baptizada pelos círculos republicanos como a “lei celerada”. A corporação policial foi reformada e singularmente reforçada nos seus poderes; os agentes passaram a gozar de tamanhas impunidades que bem se poderia declarar que eles eram completamente irresponsáveis e intangíveis no exercício das suas funções repressivas. Atacou-se também a liberdade de imprensa e foi-se ao ponto de censurar a própria Sociedade de Geografia, determinando-se que esta não poderia exprimir quaisquer opiniões sobre as políticas colonialistas do governo. Tal como em todos os regimes de força, exigiu-se também aos professores de estabelecimentos superiores de ensino que jurassem fidelidade ao Trono e ao Altar, na presença de autoridades civis e eclesiásticas.

João Franco tecia a sua teia implacavelmente, com o mau génio que mostrava em todas as situações em que se visse contrariado. Essa nota da sua personalidade neurótica, essas súbitas explosões de irreprimível cólera, não lhe retiravam a capacidade de traçar no mais fundo de si os pormenorizados planos da sua futura afirmação política. Em Fevereiro de 1897, alegando discordância em relação à nomeação recente de Pares do Reino, o gabinete avançou para a demissão. Ao abandonar o seu posto ministerial, retirando-se do ministério do Reino na companhia de José de Azevedo Castelo Branco, seu amigo e admirador, João Franco dirigiu-lhe estas palavras, infelizmente proféticas: “Agora só me tornas a ver subir estas escadas como Presidente do Conselho”. Muito havia, pois, a esperar deste apóstolo da intolerância, com alma de regedor de paróquia – assim o definiu, um dia, Guerra Junqueiro. Este antigo estudante de Coimbra que movia aos gatos, junto ao Mondego, a sua guerra santa, e espancava caloiros por noites luarentas, haveria de singularizar-se proximamente como um dos mais nefastos actores do palco político português.

8 de abril de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO XLV

(José Luciano de Castro, por Celso Hermínio)

XLV - DA "COLIGAÇÃO LIBERAL" AO "SOLAR DOS BARRIGAS"

À medida que se progredia para o fim do século XIX tornava-se transparente a deriva monárquica para governos de força e fórmulas administrativas impostas ditatorialmente. D. Carlos nada fez para que esta nefasta orientação pudesse ser contrariada. Parecia render-se, pelo contrário, às doutrinações dos que – como Oliveira Martins, Carlos Lobo de Ávila, Mouzinho de Albuquerque ou Luís de Magalhães – aconselhavam a imitação do pragmatismo centralista e militarista de Bismarck e do Kaiser Guilherme II da Prússia.

O republicanismo português não foi capaz de corresponder a este repto com a clarividência da coesão e da unidade, entrando no último lustro do século XIX com as nocivas marcas da discórdia interna. Perante a longa hegemonia do Partido Regenerador e a intolerância da sua prática de poder, houve quem advogasse uma aproximação táctica aos progressistas. Eram deste parecer Eduardo de Abreu e Gomes da Silva, que preconizavam a constituição de uma Coligação Liberal, espécie de frente unitária entre o Partido Progressista e o Partido Republicano. Os círculos radicais de Lisboa, onde pontificavam homens como João Bonança, Luz Almeida, Lomelino de Freitas e Tomé de Barros Queirós, eram radicalmente contrários a tal acordo. Esta diferença de opiniões marcou notoriamente as eleições de 15 de Abril de 1894, facilitando o lamentável espectáculo de terem sido apresentadas em Lisboa duas listas republicanas, uma “negociadora”, outra “intransigente”. A espúria aliança ficou concluída no verão de 1894, em coincidência com a guinada conservadora do gabinete de Hintze Ribeiro, com João Franco na pasta do Reino. A luta de oposição - ou das oposições - agora encetada irá fazer-se através deste entendimento entre progressistas e republicanos, frequentando ambas as facções, em inusitada e suspeita confraternidade, os “comícios das gravatas vermelhas”. Tais comícios eram manifestações estranhas, tanto pela heterogeneidade dos seus arautos como pela voz predominante de José Luciano de Castro, mestre de capela deste desafinado coro a duas vozes.

Houve, contudo, círculos republicanos que repudiaram o canto de tal sereia. Estava neste caso o sector conimbricense que se reunia em torno do jornal Resistência, onde se divisavam os nomes cimeiros daqueles estudantes que haviam integrado na cidade do Mondego a retaguarda universitária dos revoltosos do 31 de Janeiro de 1891. Falamos de João de Meneses, António José de Almeida, Malva do Vale, Afonso Costa e Silvestre Falcão. E até numa cidade do interior, como Viseu, se fazia ouvir, no jornal republicano O Intransigente, a voz indignada de Brito Camacho. Também João Chagas, recordando passadas retratações progressistas, aconselhava os republicanos menos sensatos, num dos seus Panfletos (o nº 10, de 13 de Maio de 1894), a não se deixarem enganar. Apesar disto, iremos verificar que Eduardo de Abreu e Gomes da Silva, os mais vigorosos arautos desta Coligação Liberal, irão ascender, no decurso do 6º Congresso Republicano, reunido em Lisboa em inícios de Março de 1895, ao Directório Provisório desta formação política. Mas as dissensões até nesse importante órgão de cúpula eram visíveis, uma vez que Magalhães Lima e Jacinto Nunes, também eleitos, trataram de abandonar pouco depois esse mesmo Directório, negando aos aliancistas a sua colaboração.

O governo Hintze-Franco iria dar a medida das suas intenções ao introduzir profundas alterações à legislação eleitoral. Tão drásticas elas foram que toda a oposição decidiu abster-se, não apresentando candidaturas alternativas às dos regeneradores. E assistiu-se então ao pícaro espectáculo de entrar em funcionamento, na continuidade das eleições de Novembro de 1895, uma Câmara dos Deputados exclusivamente composta por regeneradores, onde se simulavam debates sem conteúdo, de mera decoração circunstancial, para se manter viva a precária ilusão de que ainda havia um longínquo esboço de constitucionalidade e de liberdade política no seio do descomposto regime vigente. A opinião pública deu a este anómalo feto parlamentar o nome que melhor lhe quadrava: chamou-lhe o “Solar dos Barrigas” !

1 de abril de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO XLIV

XLIV - MOUZINHO E OS "ENDIREITAS"


O real ou suposto episódio dos “endireitas” ainda hoje apresenta zonas de sombra, embora pareça inserir-se na tendência autoritária que a monarquia portuguesa revelou após a revolta de Janeiro de 1891. Quem eram, afinal, os “endireitas”? Nas vésperas de Natal de 1898 reuniram-se na Quinta de Moreira da Maia, propriedade de Luís de Magalhães, um grupo de prestigiados cidadãos. Estiveram lá Jaime de Magalhães Lima, Alberto Sampaio, Pedro Gaivão, João Franco e Joaquim Mouzinho de Albuquerque. O dono da casa acolheu os visitantes e serviu-lhes de cicerone, ao mesmo tempo que Mouzinho de Albuquerque, que de todos recebia a homenagem que quadra a um herói, para todos lia trechos do seu livro Moçambique, já no prelo. Ter-se-ia tratado de uma simples reunião de gente grada e de agrado mútuo? Talvez. Mas tal não obstou a que o “marechal” progressista António Cabral, figura de referência no jornalismo e na mundanidade política, não viesse apregoar que ali se estaria a forjar o plano de uma futura ditadura, afecta ao poder real. Com efeito, Luís de Magalhães andara de braço dado com Oliveira Martins, na altura em que este quisera inocular “Vida Nova” ao Partido Progressista, fazendo-o inflectir para o evangelho do cesarismo régio. O que António Cabral veio insinuar pelas tubas da imprensa foi que, tendo falhado um literato, talvez estas notabilidades confiassem em que um heróico militar não iria repetir o fiasco pretérito. Assim, estaria em marcha um plano para “endireitar” de vez a vida pública portuguesa e as anémicas finanças do Reino. Estes “endireitas” estariam a encarar Mouzinho como o protagonista de mais uma “ditadura de engrandecimento do poder real”, a triunfar de vez e sem retorno.
Seria Mouzinho “o Homem”, “o Pagem do Rei”, o “Salvador do Trono” – ele que já era “o Herói”? Imaginemos um militarão empedernido, com toda a formação tributária das casernas de cavalaria e com uns laivos de imprecisa cultura literária; acrescentemos-lhe um temperamento agreste, de uma energia quase demencial e de um estoicismo sem limites; juntemos a isto os cheiros fortes do narcisismo e os condimentos do orgulho vaidoso e mandão; concluamos o quadro com um linguajar agressivo e sem contenção, quer o seu alvo possa ser um humilde subordinado, ou um qualquer político reticente, ou até o próprio rei. Aí temos Mouzinho de Albuquerque. É assim que ele se revela nas cartas endereçadas a um amigo tão íntimo quanto reverencial. Falamos do Conde de Arnoso, secretário pessoal de D. Carlos e seu admirador incondicional. Mouzinho era também, neste momento, o incensado, o ungido pelo Paço e pelo povo. Fizera uma excepcional progressão de carreira, passando de governador militar de Gaza, onde rendera António Enes, a governador geral de Moçambique e a comissário régio. Para isto contribuíra a sua aura de valentia, a sua lenda guerreira, a sua fama de indomável lutador. A ele se devera a pacificação do império vátua, que recalcitrara contra a obediência ao poder português. Nos fins de Dezembro de 1895, alcançara o Olimpo dos bravos na luta de Chaimite, prendendo o Gungunhana. O eco desse triunfo foi tamanho que, regressado ao torrão continental português, em meados de Dezembro de 1897, foi recebido como um Deus: a família real deslocou-se expressamente para o abraçar; as recepções foram infindáveis; fizeram-se marchas gratulatórias aux flambeaux; houve torrentes de elogios na imprensa e expressões de babosa devoção por parte de jovens militares. Mouzinho alimentava desveladamente três ódios, de que eram alvo os políticos em geral, os republicanos em particular e os jornalistas por sistema. Nas missivas para Arnoso somam-se as invectivas. José Luciano de Castro é sempre referido como o “Bacoco” e os republicanos, sem distinção, são apodados de “bandalhos”. Há sempre na sua prosa uma tensão polémica e uma violência larvar que quase assustam.
Mouzinho regressou a Moçambique em Abril de 1898 para sofrer um vexame insuportável. Cedendo a pressões de José Luciano de Castro, D. Carlos promulgou, em 7 de Julho desse mesmo ano, um decreto que reduzia as prerrogativas do comissário régio. Como seria previsível, a sua resposta foi a demissão e uma carta de desagravo, dirigida ao velho José Luciano, que continha uma violentíssima diatribe e acabava assim: “eu a ninguém temo”! Voltou ao continente português e à Lisboa da politiquice em Agosto do referido ano. D. Carlos procurou aplacá-lo, nomeando-o perceptor e aio do príncipe real D. Luís Filipe.
Eram estes os antecedentes do “Herói” que os restantes “endireitas” talvez quisessem ter tido como mentor e actor principal do palco político. E a aspiração batia em uníssono com o ideário que Mouzinho exprimia na carta dirigida ao inevitável Arnoso, em 1 de Agosto de 1898: “A única solução a tudo é governar el-rei sem Cartas”. Aliás, o desiderato parecia secundar a reflexão feita por esse secretário privado de D. Carlos quando, examinando as reacções da opinião pública à nomeação do nosso Mercúrio lusitano para perceptor de D. Luís Filipe, formulava a seguinte observação: “Os tolos querem ver na nomeação uma aposentação do herói. Fortes asnos. Da situação que vai ocupar (aio do príncipe) pode ele pôr as condições aos políticos no momento psicológico”. Esse “momento psicológico” não iria surgir porque Mouzinho de Albuquerque entendeu suicidar-se em 8 de Janeiro de 1902. Ficou assim talvez truncada a história dos “endireitas” …