27 de abril de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO XLVII

XLVII - DISSÍDIOS ...


Os republicanos mais avisados sempre tiveram João Franco na conta de um déspota ambicioso e calculista. Mas talvez não previssem o arcaboiço da sua arteira demagogia e talvez não imaginassem a requintada desfaçatez da sua hipocrisia. Quando saiu finalmente no governo, como segunda figura do interregno ditatorial que avassalou Portugal entre 1894 e 1897, fez questão de garantir ao seu amigo José de Azevedo Castelo Branco que regressaria a um futuro gabinete como chefe de governo. Logo então se desenhava a falta de honorabilidade da sua palavra, uma vez que tal só poderia vir a ocorrer se Hintze Ribeiro, que o guindara ao lugar proeminente que acabara de ocupar, se visse atacado na sua chefia e subalternizado no seu estatuto hierárquico. Os desígnios de João Franco ocultavam o veneno da traição e, analisadas as suas afirmações, não é lícito duvidar da sua alma trapaceira. Primeiro, simulou diferenças de opinião com Hintze, chefe do Partido Regenerador, como se não tivesse sido o seu braço direito e o fiel executante dos objectivos ditatoriais em que ambos se empenharam. Encenou depois um grosseiro espectáculo de campónio manhoso, lançando farpas à esquerda e à direita, apresentando-se como a virgem ofendida de um puritanismo político que quadrava mal à velhacaria do seu carácter e bradando que Portugal, com o seu sistema eleitoral rotativo, “não poderia continuar a ser o ludíbrio de regeneradores e de progressistas”. Escrevera o livro ignominioso da perseguição e da tirania e agora, porque lhe convinha, empenhava-se em apresentar essa obra como saída de uma ignota e anónima autoria. Abandonou o Partido Regenerador, que sempre fora o seu, levando a reboque uma pequena patrulha de deputados.

Confrontado com a rebelião do seu antigo delfim, Hintze Ribeiro também não soube comportar-se com a dignidade que o momento exigia. Para não sofrer as arremetidas parlamentares de personalidades que tinham estado sob a sua tutoria política, dissolveu a Câmara dos Deputados e cerziu uma nova disciplina eleitoral que retirava aos republicanos e aos franquistas todas as veleidades de poderem ver triunfar candidaturas suas. João Franco descarregou sobre essa lei, de 8 de Agosto de 1901, o seu indomável furor – neste caso justo – e designou-a por “ignóbil porcaria”. Tal baptismo não iria ser esquecido no futuro próximo, até porque a opinião pública adoptou imediatamente a deselegante expressão. Alguns republicanos ficaram intrigados com os inflamados discursos do estudante que em Coimbra perseguira gatos e caloiros por noites vingativas. As denúncias dirigidas ao regime repetiam um ou outro aspecto das reivindicações democráticas e nem todos viram nelas a manobra estudada de um homem sem escrúpulos. Em 16 de Maio de 1903, João Franco inaugurou o primeiro Centro Regenerador Liberal, tornando irreversível a cisão que pacientemente engendrara.

Também o Partido Progressista viveu um episódio similar. O chefe dos progressistas era o alquebrado José Luciano de Castro, minado pelos anos e por maleitas plurais que o amarravam frequentemente a uma cadeira de rodas. Os apaniguados do seu grémio deslocavam-se expressamente ao palácio daquele mentor, à Rua dos Navegantes, recebendo aí as directrizes que lhes eram transmitidas por esse incapacitado ancião. De manta sobre os joelhos, acariciando a pelagem do gato favorito, que se lhe aninhava no colo, José Luciano perseverava numa chefia política para a qual já não dispunha de condição física viável. Um dos seus “marechais” era José de Alpoim, figura falsamente imponente na adiposidade do imenso corpanzil e na fingida severidade do duplo queixo. Tinha sido despachado para a Corte inglesa por alturas do pós-Ultimato, com a missão de reduzir ao mínimo a amplitude do vexame. Não se saiu dessa tarefa bem nem mal, pela razão simples de não se poder esvaziar os mares da afronta com a colher de chá da mais crassa inépcia diplomática. Por lá se arrastou como pôde. Fialho de Almeida, na sua ácida colectânea d’Os Gatos, sovou-o com uma das análises mais inclementes que algum dia se abateram sobre as nulidades da coetânea galeria constitucional. Alpoim era, com efeito, uma tonitruante figura de comédia bufa. Senhor de um perfil maciço e de um linguajar de rufia de viela suja, deu-se a julgar que daí lhe advinham provadas capacidades de comando. E como ainda se ia aguentando nas pernas balofas, sonhou que poderia arrasar o velhote da cadeira de rodas e do gato no regaço, herdando-lhe, talvez, a chefatura política. Era, uma vez mais, a comprovação da deslealdade, dado que Alpoim fora feito ministro da Justiça pelo habitante do Palácio dos Navegantes, no gabinete a que presidira, em 1904. Esta outra dissidência cumpriu-se em pleno parlamento, em Maio de 1905, quando nele se apreciava o concurso para a renovação do monopólio dos tabacos.

Não há palavras mais adequadas e brilhantes do que as de João Chagas para caracterizar o momento político após a consumação das duas dissidências e as consequências inevitáveis daí resultantes. Ouçamo-lo, pois, numa das suas magníficas Cartas Políticas: “A ficção da opinião pública em Portugal estava organizada pelo Estado para votar em progressistas e regeneradores, e não se compreendia parlamento português onde estes dois partidos não estivessem nitidamente representados – progressistas no governo, regeneradores na oposição, ou vice-versa. A entrada na cena política de regeneradores que não eram regeneradores (João Franco) e de progressistas que não eram progressistas (José d’Alpoim) dividiu a tal ponto o parlamento que não há governo que possa governar com ele, e este é o aspecto mais grave, mais urgente da crise monárquica, crise sem solução, porquanto sem partidos, a monarquia não pode governar com o parlamento, e sem o parlamento não pode governar mais um dia com o país”.

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