4 de maio de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO XLVIII

XLVIII - A TOMADA DO PODER POR JOÃO FRANCO

As relações pessoais entre Hintze Ribeiro, chefe do Partido Regenerador, e José Luciano de Castro, figura maior do Partido Progressista, nunca se elevaram à superação dos pequeninos ódios e das pueris emulações. Se o primeiro não herdara o sólido pragmatismo de Fontes Pereira de Melo, o segundo nada aprendera com a fina complacência de Anselmo Braamcamp. Por outras palavras: ambos se alheavam de passados paradigmas históricos sobre os quais repousara, apesar de tudo, o alicerce sólido de um rotativismo sem grandes sobressaltos. José Luciano sabia, de ciência certa, que ultrajaria intoleravelmente o seu opositor se distinguisse com o menor gesto de boa vontade o rebelde João Franco, trânsfuga do redil regenerador. Por seu turno, Hintze também não ignorava que qualquer patrocínio concedido a Alpoim, desertor do ninho progressista, seria visto como indesculpável pelo alquebrado ancião progressista. A ironia está em que a demolição do edifício monárquico deveu muito menos, nos seus primórdios, à acção revolucionária do republicanismo militante do que ao jogo maldizente, de soalheiro, destas duas comadres desavindas, incapazes de sobrepor os interesses do regime – que diziam servir - à ingénua fogueira das correspondentes provocações subjectivas.

A crise do rotativismo revelar-se-ia, na plena luz das suas contradições, quando os regeneradores liberais de João Franco concluíram com os progressistas de José Luciano de Castro uma concentração liberal contra o gabinete que Hintze formara, em Março de 1906. Não foram necessários dois meses incompletos para que o governo se despenhasse, tendo crescido a exasperação e os desejos de desforra dos regeneradores. Neste hiato temporal insubordinara-se a marinhagem do cruzador D. Carlos e o desgarrado Partido Republicano aproveitara o ensejo para desferir sobre a monarquia cargas cerradas de críticas, em comícios muito concorridos. Também se realizaram, ainda sob o governo dos regeneradores, as eleições de 29 de Abril ou “do Peral”, tristemente famosas pela manipulação que suscitaram. Dera-se o caso de Afonso Costa poder reunir condições de eleição para a Câmara dos Deputados, se as urnas não expressassem uma sólida maioria alternativa. Era um cenário de pesadelo para o poder instalado, dado que aquele candidato concentrava o mais depurado ódio do poder vigente. Para obstar a tamanho risco, o governo ordenou descargas cerradas de votos em Bernardino Machado, também candidato republicano, mas muito mais suportável para as sensibilidades realengas. Porém, Bernardino, que fora considerado eleito, declinou o mandato e denunciou a torpeza da chapelada. A dignidade do gesto calou tão fundo no grémio republicano que o denunciante da manobra teve em Lisboa, na estação do Rossio, uma apoteótica manifestação, a qual lhe foi prestada pelos correligionários, quando aí chegou, a 4 de Maio. Mas essa colectiva demonstração de apreço não se concluiu pacificamente. As forças policiais irromperam na gare e reprimiram com toda a brutalidade os espavoridos manifestantes.

Dois dias depois realizava-se uma tourada no Campo Pequeno. A família real ocupou o seu camarote sem que se tivessem suscitado especiais aplausos. Pelo contrário, o aparecimento de Afonso Costa nessa praça originou uma trovoada entusiástica de palmas e de aclamações. Foi um comportamento colectivo especialmente deprimente para os habitantes do Paço. Não foi, contudo, uma lição bem aprendida. Quase de seguida, D. Carlos recebeu no seu palácio João Franco e com ele conferenciou durante duas horas. Quando Hintze Ribeiro solicitou ao monarca a dissolução da Câmara dos Deputados, condição que considerava imprescindível para continuar a exercer a governação, D. Carlos negou-lha. Argumentou que a opinião pública não aceitaria esse interregno ditatorial e que nenhuma vantagem se alcançaria com o acirrar de novos factores de crispação. Não restava a Hintze outro caminho senão o de pedir a demissão. Depois disso, o rei apressou-se a escrever a João Franco, formulando-lhe o convite para a chefia de um novo governo. Era isto curial? Só o era porque Franco, chefe de um pequeno e frágil partido político recém-formado, se escorava na concentração liberal negociada com o velho José Luciano. Este selara a agonia do modelo rotativo. As dissidências extra-rotativas eram débeis demais para constituírem, por si mesmas, um obstáculo intransponível à normalidade constitucional. Bastava, para tanto, que as chefias tradicionais se decidissem a perpetuar-lhes a marginalidade. Infligindo a Hintze a afronta de se coligar com João Franco, José Luciano não se limitava a homologar uma traição. Introduzia também na racionalidade do sistema um elemento anómalo, quebrando em definitivo a sua lógica bicéfala. O Partido Progressista vingava, com este procedimento, os favores eleitorais que Hintze dispensara ao grupelho de Alpoim. E José Luciano podia agora ter a doce compensação da vingança, enquanto o gato da sua predilecção ia ronronando, em gozo felino, no seu colo e sob o seu afago.

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