28 de maio de 2010

UM JORNALISMO NAUSEABUNDO


O jornal “Sol” converteu-se definitivamente na comadre de soalheiro do jornalismo português. Ele mete o olho (não sabemos bem qual) no buraco da fechadura; ele espiolha SMSs privados com a voracidade própria dos polícias de costumes e com o puritanismo hipócrita dos “portuga” mal lavados; ele espezinha tudo o que é inerente a códigos deontológicos ou a regras básicas de jornalismo escorreito, para se preocupar só com o desforço, com a desforra odienta que quer obter sobre a figura de um Primeiro-Ministro que, não sendo grande coisa, merece ser tratado como qualquer outro concidadão.

Imaginemos que um meu inimigo me quer tramar. Há processos limpos e processos sabujos para conseguir este efeito. O processo limpo é o da inquirição à minha vida pública – por isso é que ela é pública – e o ataque às insuficiências da mesma. As acusações poderiam ser desta natureza: o Professor Fulano falta às aulas e ensina mal ; o Professor Fulano recebe dinheiro para passar ou chumbar alunos; o Professor Fulano retira dividendos indevidos da sua profissão. Tudo isto, desde que devidamente provado, integra a esfera pública da responsabilidade individual e pode – deve, até – ser publicitado em jornais de higiene capaz. Vamos agora supor que um meu inimigo, para me esquartejar, passa a vigiar o meu telefone privado, o meu telemóvel privado, a minha residência, o barbeiro onde eu vou, o café que eu frequento e grava as minhas conversas, as minhas observações, as minhas frases, as minhas dicas, os meus desabafos: aquelas dicas e aqueles desabafos que eu livremente expendo, por me sentir cidadão livre num país livre e por ter como certo, talvez ingenuamente, que a pulhice ainda não está entronizada nos órgãos de comunicação do meu país como sistema normal de colheita de informações.

Agora, o jornal “Sol” quer tramar o nosso concidadão Sócrates com base num SMS que ele teria recebido do nosso concidadão Vara. A questão obtusa não está em saber se Sócrates ou Vara são flores de bom cheiro. O cerne do problema está em saber se o cidadão Sócrates, o cidadão Vara, o meu barbeiro, o gajo que me traz a bica, o presidente da Câmara da minha cidade, o presidente da Junta da minha freguesia, o presidente da Direcção do meu grupo recreativo, o jogador de futebol da minha equipa, o meu colega de trabalho, numa palavra, o universo dos habitantes de um país chamado Portugal, têm ou não um território de convivência asseada, uma reserva de privacidade, ou, pelo contrário, uma nitreira toda pública, todos os dias revolvida por jornalistas iguais aos do “Sol”. E a diferença entre o asseio da primeira hipótese e a matéria fecal da segunda hipótese está em saber se existe ou não uma coisinha elementar ONDE REPOUSAM TODAS AS LIBERDADES e que se chama o REDUTO PRIVADO DA CIDADANIA.

Num país decente, o Senhor jornalista do “Sol” iria malhar, mais dia, menos dia, com o costado na prisão. Neste, é natural que ele acabe por conseguir o seu objectivo mais pertinaz: a demissão do concidadão Sócrates com base num miserável espiolhamento dos actos privados da sua vida e dos actos privados da vida dos seus amigos.

Isto está a passar-se em Portugal, no ano da graça de 2010, cem anos após a proclamação de um regime que terá de ser digno, limpo, valorativo e transparente para merecer o nome que lhe foi dado por Homens dignos, limpos, valorativos e transparentes: o nome de República Portuguesa.


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