Quando saiu de casa, tudo para ele era constante e nítido. Sabia onde arrumava a carteira, no bolso direito, bem fechado, não fossem os malandros surripiá-la num encontrão calculado. E também conhecia o caminho do correio, onde iria depositar a resposta à carta que levava no bolso esquerdo e da qual esperava bons efeitos. Era um trajecto concorrido, aquele que iria trilhar, talvez um pouco poluído, devido à passagem dos transportes colectivos e da torrente infindável dos automóveis particulares. Como o calendário assinalava a antevéspera do Natal, os passeio regurgitavam de gente, mais tolerante e risonha do que era habitual, “com licença, com licença, desculpe, ora essa, não tem de quê”. Havia uma cervejaria do lado direito que acolhia os bebedores do fim da tarde, ventrudos e opinativos, e do outro lado ficava a casa da Alzira, aquela trintona inexplicavelmente encalhada, proprietária de um rabo bem redondinho e de uns seios firmes, opulentos, de se lhe tirar o chapéu. Estugou o passo porque o relógio lhe mostrava que só faltavam vinte minutos para as seis da tarde, hora fatal do encerramento dos correios. Era forçoso que a carta de resposta seguisse sem tardança, de preferência em correio azul. E ainda tinha de a redigir, sobre o balcão do correio. Fitou primeiro a vidraça ampla da cervejaria e mal a reconheceu, tão silenciosa ela se lhe apresentou. Olhou depois para a janela da casa da Alzira, esperando que nela se recortasse o busto desafiador da sua proprietária, que isto de lavar a vista é para todos e não produz dano de monta. Perto do fim da rua alguma coisa rebentou no interior da sua cabeça. Sentiu uma grande paz interior mas também um pavor singular. Num momento, esqueceu tudo. E o mundo apresentou-se-lhe como se poderia figurar a quem acaba de nascer. Cercava-o um torvelinho de sons sem significado, de luzes sem disciplina, de cheiros sem intenção, de geometrias sem lógica. “Calma, sim, calma, isto já passa. Mas que é isto? Onde estou? Mas afinal quem sou eu?”. Era singular que tudo à sua volta permanecesse idêntico, mas esvaziado daquilo que poderia conferir-lhe finalidade. Era estranho que ele próprio navegasse à bolina na margem de si mesmo. Um homem barbeado passou por ele e saudou-o: “Olá, boa tarde ou boa noite, escolhe tu”. E sorriu-lhe sem parar. “Escolhe tu? Escolho o quê?”. Foi andando à toa pelas ruas da cidade. Apalpou num bolso o envelope bem dobrado, a que haveria de responder, mas verificou que lhe eram indiferentes as garatujas do endereço. Palmilhou quilómetros e saiu do perímetro urbanístico, irrompendo por campos de mato e de árvores torcidas, talvez oliveiras, sabe-se lá. Abateu-se sobre ele um negrume impenetrável, gótico. Sentiu-se cansado, mas vislumbrou uma luz bruxuleante no fundo da sua área de visão. Reconheceu que chegara a um território plano e imenso, lixeira gigantesca onde se acumulavam sacos de plástico, frigoríficos manetas, banheiras esburacadas, colchões com as molas à mostra, mobílias destroçadas. A luz vinha do interior de uma ampla estrutura de ferros torcidos, talvez o receptáculo de um camião TIR acidentado ou a cabina de um transporte colectivo abatido à carga. Ouviu gemidos de mulher, primeiro mais baixos e murmurados, depois mais castigados e audíveis. Vinham de um canto escuso desse circo de ferro, iluminado em bamboleio pelo coto de uma vela. Nesse canto, Alzira fazia força para parir. Mas ele não a reconheceu. Ficou parado, como um pássaro cego ou um fantasma sem argumento. “Ajuda-me, merda, ajuda-me. Isto dói tanto!”. E ele ajudou ao nascimento do filho de Alzira, não porque soubesse o que estava a fazer mas porque a palavra de Alzira lhe guiou o gesto e lhe afinou a perícia. Quando a criança soltou os primeiros choros, Alzira disse-lhe: “Agora vai-te embora e esquece tudo o que viste”. Ele respondeu: “Já não tenho nada a esquecer. Sabes, eu esqueci-me de mim mesmo”. E ela retorquiu-lhe: “Ainda mal para ti, ainda bem para mim. Some-te”, “Está bem, mas diz-me ao menos que papel é este que trago dentro do bolso”, “Dá-mo cá. Ah, sim, parece ser uma carta de amor. Diz aqui que uma tal Alzira esperará por ti num campo de lixo e te fará sentir como S. José. Como as mulheres são patetas, benza-as Deus”. E ele ouviu-se responder, como num eco: “Benza-as Deus”.
23 de dezembro de 2009
19 de dezembro de 2009
PAISAGENS CONTINGENTES
O desespero de Van Gogh cortou-lhe uma orelha. A descrença de Herculano fez dele um simples azeiteiro, em Vale de Lobos. O niilismo de Mário de Sá Carneiro pedia que na morte lhe ajaezassem um burro à andaluza e batessem em latas. O não-catolicismo de Fernando Pessoa converteu a pomba do Espírito Santo num bicho irrequieto, metendo o bico impertinente pelos quatro cantos do céu e sujando de excrementos todas as nuvens do Empíreo Sagrado. Significa isto que a vida é uma espécie de despedida, interpretada por cada um a seu jeito. Van Gogh despediu-se de si decepando a própria orelha. Mário de Sá Carneiro despediu-se dos cangalheiros amigos fazendo do seu funeral um carnavalesco cortejo, uma arruada estrepitosa, de burro em riste. Pessoa despediu-se da fé dos seus avós através de uma pomba semi-sagrada e pouco higiénica. Recordo o último quadro de Van Gogh, com passarada negra a rasar o amarelo-cereal do campo cultivado. Dizem que a última frase de Herculano, ao sentir-se morrer foi “tirem-me daí essas mulheres!”. Sá Carneiro viveu a morte em vida, sempre incomodado com a sua rotunda figura física, a chamar-se “Esfinge Gorda”. Pessoa desdobrou-se em heterónimos, que o fizeram ser, não sendo, existir, não existindo, como se a própria dialéctica do Ser-Outro de Hegel nele se exemplificasse reticentemente.
O que assusta é ficarmos sempre à tona das palavras, longe da íntima verdade do que cada um foi ou teria sido em momentos decisivos. O que assusta é sermos contingentes.
14 de dezembro de 2009
XXXIV - MEMORIAL REPUBLICANO
O protagonismo interno de Afonso Costa extingue-se com a ditadura de Sidónio Pais, o “Presidente-Rei” (Jesus Pabón). Vê-lo-emos, bem mais tarde, a bater-se pelos interesses da sua pátria nos grandes conclaves internacionais: na Sociedade das Nações, no Tribunal Permanente de Justiça Internacional, na Comissão da Dívida de Guerra. Quando chegou a ditadura militar de 28 de Maio de 1926 e o Estado Novo do salazarismo, tudo foi feito para infamar e diabolizar a sua personalidade ou, após o seu falecimento, a sua memória. E isto acaba por ser compreensível: os regimes de pigmeus jamais suportaram a grandeza do civismo impoluto.
9 de dezembro de 2009
"SOPLILLO"
Rodrigo de Villandrando pintou um dia, em plena época barroca, um quadro impressionante: Filipe , o futuro Filipe IV, poderoso monarca de Espanha, fez-se representar junto do seu anão “Soplillo”. Digo bem e digo justo: do SEU anão. Ambos se encontram afogados naquelas golas farfalhudas que a moda de época tornava obrigatórias. As vestes, no geral, não divergem muito. Divergem, isso sim, as estaturas. E como não seria assim? “Soplillo” é anão, uma espécie de microcosmos do Céu em que reinará o seu soberano, uma rubrica do Infinito que é e virá a ser o seu soberano. Mas aquele poderoso Filipe, príncipe católico de uma Ibéria inquisitória, sabia que a evangélica lição o obrigava a reconhecer no miniatural anão um igual, não perante si, decerto, mas perante Deus. “Soplillo” manifesta um ar triste, de joguete conformado, fatalista, que não protesta em homenagem à segurança concedida por aquele mundano Todo-Poderoso ao seu brinquedo ocasional. O que impressiona, o que me impressiona não são vestes, expressões, pompas ou cores do quadro, ainda que neste se explicite uma insólita irrupção de tons laranja. O gesto, o gesto, o gesto ( e grito isto como se dissesse horror, horror, horror): olhemos de frente o gesto aristocrata, aquela mão pousada sobre a cabeça do anão, de maneira tão imperial como a mão de um Ulisses afagando um punhal, afogando um inimigo, furando o olho do Ciclope Polifemo adormecido. Se Filipe fosse Carlos V, a sua mão estaria pousada do mesmo modo num globo terrestre, para significar que o mundo lhe pertencia. Se Filipe fosse Luís XIV, a sua mão repousaria talvez na maçaneta do bastão que Hyacinthe Rigaud lhe reservou, numa pintura proverbial, para significar que tudo se lhe deveria sujeitar. Mão protectora? Que ingenuidade! Mão possessiva, mão de garra e de garrote, convertendo em coisa o que perto de coisa já estava, por desgraça do corpo-miniatura. Adeus, “Soplillo”! Agora vai dormir. E, olha, não te esqueças de rezar. O teu dono deverá estar a fazer o mesmo, por entre veludos, brocados e cheiros de círios consumidos. Deus é grande! Um dia, “Soplillo”, um dia talvez deixes de ser a coisa do teu príncipe. Por agora, é cedo.
4 de dezembro de 2009
NA CORRENTE
No rio da minha vida
Nadam peixes orientais
Exóticos e passionais.
No rio da minha vida
Há musgos e arvoredos
E alpondras de segredos.
No rio da minha vida
Vejo cardumes de prata
Numa correnteza exacta.
No rio da minha vida
Há margens de purpurina
E suspiros de menina.
No rio da minha vida
Vai-se o tempo a cada hora.
E quando me for embora
Do rio da minha vida
Manter-se-ão na corrente -
Testemunhos de quem sente -
Certos peixes orientais
Exóticos e passionais
E alpondras de segredos
A recordarem meus dedos
E suspiros de menina
Na alma de purpurina
Que não está porque ficou
Que não foi porque restou
Nesses cardumes de prata
Desta vida pouco exacta.
Quem irá pescar agora
Esses peixes orientais
Exóticos e passionais?
Outro será que não eu?
Ou um eu que outro será?
1 de dezembro de 2009
A INSOLÊNCIA DO ZÉ POVINHO (Final)
É nos termos estritos da espiritualidade judaica e cristã que para nós se realiza a percepção valorativa do corpo humano. O homo erectus atribuirá toda a dignidade à cabeça e irá operando, a partir dela, sucessivas desvalorizações, em sentido descendente. A cabeça acolhe o cérebro, fulcro da nobilíssima actividade pensante e garante da superioridade deste antropóide sobre todas as demais criaturas. Foi sobre o rosto que incidiram as atenções das fisiognomonias, que tanto êxito alcançaram na Idade Média (Alexandre Magno, Miguel Escoto, Pedro de Pádua) e na Renascença (Bartolomeu Coclès, João de Indaguine, mais tardiamente João Batista Della Porta) , irrompendo em pleno período contemporâneo através da obra do monge suíço Johann Kaspar Lavater. Este místico sábio procurou descortinar através da interpretação dos recortes sombreados dos perfis, os sinais indiciadores da maior ou menor aproximação dos caracteres individuais à bondade desejada por Deus. O tronco, dando guarida ao coração, é ainda entendido como parte apreciável da anatomia humana. Uma longa genealogia de médicos do século XVI – como Jerónimo Cardan, Girolamo Fracastoro, Francisco Valleriola ou Laurent Joubert – prolongaram os ensinamentos de Aristóteles e Galeno, concedendo ao coração um papel não inferior ao do cérebro. Através dos seus movimentos, os vapores subtis e voláteis dos espíritos animais, engendrados pelo sangue, eram os portadores das faculdades da alma, ordenando aos nervos e aos músculos as suas acções e reacções específicas. Abaixo do coração situa-se o estômago, órgão da materialidade sem remissão, lugar natural das digestões e das eructações, votado à satisfação de gulas pecaminosas e venais. Segue-se-lhe o ventre, encarado como um saco de tripas por onde transitam matérias fétidas e exalações pestíferas. Finalmente, fazendo a apoteose do rebaixamento, surgia o baixo-ventre, lugar de inserção dos órgãos sexuais, veículos privilegiados do apetite carnal e da luxúria, ou seja, do pecado e do mal. Quer isto dizer que a imagem do homem se espiritualiza progressivamente em sentido ascendente e progressivamente se materializa em sentido descendente. E é no quadro desta simbolização antropomórfica que a hilariedade provocada pelo manguito do Zé Povinho deve ser compreendida. Não se trata apenas de enfatizar o anátema lançado por certa teologia católica sobre o riso, presente em autoridades tão distintas e tão separadas cronologicamente como S. João Crisóstomo, Basílio de Cesareia, S. Jerónimo ou Bossuet, ao abrigo do pressuposto de que Cristo nunca rira. A indagação baudelairiana do riso deixa-se complementar com a franca apologia materialista de Rabelais. É assim provável que todos nós, espectadores do manguito, gente tão séria e tão instruída que até frequenta congressos internacionais, deixemos cair um sorriso indulgente sobre o gesto fálico que nos nega o fiado, retirando-nos a confiança. É mais provável, contudo, que as gargalhadas mais sonoras partam dos cínicos de agora, daqueles cínicos que, à maneira de Rabelais, vivem em alegria as efusões da matéria e não se consideram vexados com isso e por isso. Mas é longa a experiência da espiritualidade crente no trânsito da vida dos Zés Povinhos lusitanos de agora e sempre. E, por muito cínicos que possam ser os exemplares tresmalhados deste estereótipo, até esses se deixaram fundir no molde judeo-cristão da civilização a que pertencem. O manguito é, portanto, a invectiva, a imprecação, a maldição lançada sobre o que incorre na suspeita de querer enganar. E essa fulminação traduz o sentido bem próximo de um “vai para o inferno”, de um “vai para as regiões da inferioridade”, de um “vai para o diabo”. As veredas da perdição para que nos adverte o catecismo católico baseiam-se na trilogia amaldiçoada do “mundo, diabo e carne”. Pois bem: o manguito não é mais do que a carne diabólica no mundo da perdição, mundo sensível, material, tentador. Isto permite-nos retirar uma conclusão paradoxal. O manguito do Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro é certamente um gesto obsceno e auto-defensivo. Mas ele não deixa de homologar e ratificar uma doutrina conservadora. Nele, quem triunfa não é Rabelais, é a Santa Madre Igreja. Se o manguito fosse um puro acto de exibição, como os de Gargântua, se o manguito fosse o arroto triunfal no fim de uma copiosa refeição pantagruélica, se ele não incluísse um juízo de condenação para com o outro, bem poderíamos sustentar que através dele se reivindicava a dignidade do estatuto material da vida. Não é assim. O manguito desqualifica o destinatário do gesto a partir da valorização do inteligível, do espiritual e da correlativa desvalorização do corpóreo. Assim sendo, ele declara subliminarmente, por palavras rudes, o que a filosofia espiritualista exprime explicitamente em discursos de requintada elaboração.
Vamos concluir. Quem se deslocar a Pompeia verificará que a direcção do lupanar da cidade está assinalada em lajes de pedra, no chão de veredas próximas, por falos nelas desenhados e criteriosamente orientados. É provável que as meretrizes de Pompeia exigissem o imediato pagamento dos seus serviços, sem margem para fiados. Mas a verdade é que não encontrámos por lá nenhum equivalente do manguito. É de supor, portanto, que tendo Pompeia exibido falos, escancaradamente, sem os condenar através de juízos larvares, adstritos a imprecações dirigidas a terceiros, é de supor, dizíamos, que esse vicioso lugar tenha sido alvo de uma sentença definitiva, proferida por alguma potência transcendente. É deveras provável que tenha sido por isso, portanto, que o Vesúvio a soterrou.