23 de dezembro de 2009

CONTO DE NATAL

Quando saiu de casa, tudo para ele era constante e nítido. Sabia onde arrumava a carteira, no bolso direito, bem fechado, não fossem os malandros surripiá-la num encontrão calculado. E também conhecia o caminho do correio, onde iria depositar a resposta à carta que levava no bolso esquerdo e da qual esperava bons efeitos. Era um trajecto concorrido, aquele que iria trilhar, talvez um pouco poluído, devido à passagem dos transportes colectivos e da torrente infindável dos automóveis particulares. Como o calendário assinalava a antevéspera do Natal, os passeio regurgitavam de gente, mais tolerante e risonha do que era habitual, “com licença, com licença, desculpe, ora essa, não tem de quê”. Havia uma cervejaria do lado direito que acolhia os bebedores do fim da tarde, ventrudos e opinativos, e do outro lado ficava a casa da Alzira, aquela trintona inexplicavelmente encalhada, proprietária de um rabo bem redondinho e de uns seios firmes, opulentos, de se lhe tirar o chapéu. Estugou o passo porque o relógio lhe mostrava que só faltavam vinte minutos para as seis da tarde, hora fatal do encerramento dos correios. Era forçoso que a carta de resposta seguisse sem tardança, de preferência em correio azul. E ainda tinha de a redigir, sobre o balcão do correio. Fitou primeiro a vidraça ampla da cervejaria e mal a reconheceu, tão silenciosa ela se lhe apresentou. Olhou depois para a janela da casa da Alzira, esperando que nela se recortasse o busto desafiador da sua proprietária, que isto de lavar a vista é para todos e não produz dano de monta. Perto do fim da rua alguma coisa rebentou no interior da sua cabeça. Sentiu uma grande paz interior mas também um pavor singular. Num momento, esqueceu tudo. E o mundo apresentou-se-lhe como se poderia figurar a quem acaba de nascer. Cercava-o um torvelinho de sons sem significado, de luzes sem disciplina, de cheiros sem intenção, de geometrias sem lógica. “Calma, sim, calma, isto já passa. Mas que é isto? Onde estou? Mas afinal quem sou eu?”. Era singular que tudo à sua volta permanecesse idêntico, mas esvaziado daquilo que poderia conferir-lhe finalidade. Era estranho que ele próprio navegasse à bolina na margem de si mesmo. Um homem barbeado passou por ele e saudou-o: “Olá, boa tarde ou boa noite, escolhe tu”. E sorriu-lhe sem parar. “Escolhe tu? Escolho o quê?”. Foi andando à toa pelas ruas da cidade. Apalpou num bolso o envelope bem dobrado, a que haveria de responder, mas verificou que lhe eram indiferentes as garatujas do endereço. Palmilhou quilómetros e saiu do perímetro urbanístico, irrompendo por campos de mato e de árvores torcidas, talvez oliveiras, sabe-se lá. Abateu-se sobre ele um negrume impenetrável, gótico. Sentiu-se cansado, mas vislumbrou uma luz bruxuleante no fundo da sua área de visão. Reconheceu que chegara a um território plano e imenso, lixeira gigantesca onde se acumulavam sacos de plástico, frigoríficos manetas, banheiras esburacadas, colchões com as molas à mostra, mobílias destroçadas. A luz vinha do interior de uma ampla estrutura de ferros torcidos, talvez o receptáculo de um camião TIR acidentado ou a cabina de um transporte colectivo abatido à carga. Ouviu gemidos de mulher, primeiro mais baixos e murmurados, depois mais castigados e audíveis. Vinham de um canto escuso desse circo de ferro, iluminado em bamboleio pelo coto de uma vela. Nesse canto, Alzira fazia força para parir. Mas ele não a reconheceu. Ficou parado, como um pássaro cego ou um fantasma sem argumento. “Ajuda-me, merda, ajuda-me. Isto dói tanto!”. E ele ajudou ao nascimento do filho de Alzira, não porque soubesse o que estava a fazer mas porque a palavra de Alzira lhe guiou o gesto e lhe afinou a perícia. Quando a criança soltou os primeiros choros, Alzira disse-lhe: “Agora vai-te embora e esquece tudo o que viste”. Ele respondeu: “Já não tenho nada a esquecer. Sabes, eu esqueci-me de mim mesmo”. E ela retorquiu-lhe: “Ainda mal para ti, ainda bem para mim. Some-te”, “Está bem, mas diz-me ao menos que papel é este que trago dentro do bolso”, “Dá-mo cá. Ah, sim, parece ser uma carta de amor. Diz aqui que uma tal Alzira esperará por ti num campo de lixo e te fará sentir como S. José. Como as mulheres são patetas, benza-as Deus”. E ele ouviu-se responder, como num eco: “Benza-as Deus”.

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