19 de dezembro de 2009

PAISAGENS CONTINGENTES

O desespero de Van Gogh cortou-lhe uma orelha. A descrença de Herculano fez dele um simples azeiteiro, em Vale de Lobos. O niilismo de Mário de Sá Carneiro pedia que na morte lhe ajaezassem um burro à andaluza e batessem em latas. O não-catolicismo de Fernando Pessoa converteu a pomba do Espírito Santo num bicho irrequieto, metendo o bico impertinente pelos quatro cantos do céu e sujando de excrementos todas as nuvens do Empíreo Sagrado. Significa isto que a vida é uma espécie de despedida, interpretada por cada um a seu jeito. Van Gogh despediu-se de si decepando a própria orelha. Mário de Sá Carneiro despediu-se dos cangalheiros amigos fazendo do seu funeral um carnavalesco cortejo, uma arruada estrepitosa, de burro em riste. Pessoa despediu-se da fé dos seus avós através de uma pomba semi-sagrada e pouco higiénica. Recordo o último quadro de Van Gogh, com passarada negra a rasar o amarelo-cereal do campo cultivado. Dizem que a última frase de Herculano, ao sentir-se morrer foi “tirem-me daí essas mulheres!”. Sá Carneiro viveu a morte em vida, sempre incomodado com a sua rotunda figura física, a chamar-se “Esfinge Gorda”. Pessoa desdobrou-se em heterónimos, que o fizeram ser, não sendo, existir, não existindo, como se a própria dialéctica do Ser-Outro de Hegel nele se exemplificasse reticentemente.

O que assusta é ficarmos sempre à tona das palavras, longe da íntima verdade do que cada um foi ou teria sido em momentos decisivos. O que assusta é sermos contingentes.

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