9 de dezembro de 2009

"SOPLILLO"

Rodrigo de Villandrando pintou um dia, em plena época barroca, um quadro impressionante: Filipe , o futuro Filipe IV, poderoso monarca de Espanha, fez-se representar junto do seu anão “Soplillo”. Digo bem e digo justo: do SEU anão. Ambos se encontram afogados naquelas golas farfalhudas que a moda de época tornava obrigatórias. As vestes, no geral, não divergem muito. Divergem, isso sim, as estaturas. E como não seria assim? “Soplillo” é anão, uma espécie de microcosmos do Céu em que reinará o seu soberano, uma rubrica do Infinito que é e virá a ser o seu soberano. Mas aquele poderoso Filipe, príncipe católico de uma Ibéria inquisitória, sabia que a evangélica lição o obrigava a reconhecer no miniatural anão um igual, não perante si, decerto, mas perante Deus. “Soplillo” manifesta um ar triste, de joguete conformado, fatalista, que não protesta em homenagem à segurança concedida por aquele mundano Todo-Poderoso ao seu brinquedo ocasional. O que impressiona, o que me impressiona não são vestes, expressões, pompas ou cores do quadro, ainda que neste se explicite uma insólita irrupção de tons laranja. O gesto, o gesto, o gesto ( e grito isto como se dissesse horror, horror, horror): olhemos de frente o gesto aristocrata, aquela mão pousada sobre a cabeça do anão, de maneira tão imperial como a mão de um Ulisses afagando um punhal, afogando um inimigo, furando o olho do Ciclope Polifemo adormecido. Se Filipe fosse Carlos V, a sua mão estaria pousada do mesmo modo num globo terrestre, para significar que o mundo lhe pertencia. Se Filipe fosse Luís XIV, a sua mão repousaria talvez na maçaneta do bastão que Hyacinthe Rigaud lhe reservou, numa pintura proverbial, para significar que tudo se lhe deveria sujeitar. Mão protectora? Que ingenuidade! Mão possessiva, mão de garra e de garrote, convertendo em coisa o que perto de coisa já estava, por desgraça do corpo-miniatura. Adeus, “Soplillo”! Agora vai dormir. E, olha, não te esqueças de rezar. O teu dono deverá estar a fazer o mesmo, por entre veludos, brocados e cheiros de círios consumidos. Deus é grande! Um dia, “Soplillo”, um dia talvez deixes de ser a coisa do teu príncipe. Por agora, é cedo.

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