21 de setembro de 2011

O MEU ARQUIVO DE IMAGENS 3. Pérolas a porcos


A expressão “dar pérolas a porcos” revela-nos uma genealogia muito antiga. Tome-se como exemplo a representação que se apresenta num baixo-relevo do período medieval, de um templo em Ruão, na Normandia, onde se apresenta uma mulher que alimenta os seus porcos com rosas. “Alimentar porcos com rosas” é uma ideia completamente equivalente ao sentido que ainda hoje se confere à frase “dar pérolas a porcos”. Seria curiosa a demanda em torno da questão de apurar os motivos da menor consideração que o porco mantém, mesmo nas formações sociais judaico-cristãs, em relação a outros animais comestíveis. Poderia indicar-se a nula tendência, apresentada pelo porco, relativamente a práticas ou hábitos higiénicos. Poderia imaginar-se que um animal pouco exigente no domínio alimentar tenha suscitado pendores marcantes de repulsa por parte do ser humano. Mas contra isto poderá prevalecer a inegável utilidade de um animal cuja matéria física é totalmente aproveitada na nutrição corrente. O porco é, comprovadamente, um bicho mal-amado. Na expressão “dar pérolas a porcos” , o animal visado poderia ser substituído por qualquer outro. Mas ninguém diz “dar pérolas a ovelhas”, “dar pérolas a jumentos” ou “dar pérolas a cães”. E contra isto, nem os belos enchidos são factor de valorização…

20 de setembro de 2011

DE DANTE A RABELAIS

A “Divina Comédia”, de Dante Alighieri, encerra a Idade Média e descerra a Idade Moderna. A comédia perdera, “in illo tempore”, direitos de cidade. Tinham ficado para trás o Aristófanes, das “Nuvens”, o Plauto, da “Comédia da Marmita” e da “Comédia dos Burros” e também o Terêncio do “Eunuco” e da “Sogra”. Mas a Idade Média quase viria a esquecer os legados clássicos. E esse esquecimento foi tão vincado que a própria palavra “comédia” perdeu o significado que os gregos e os romanos lhe haviam atribuído: passou a significar apenas “narrativa”, “enunciado de factos concatenados e recheados de peripécias”, “narração dramática”, ou seja, um dizer susceptível de produzir emoções. Assim se compreende que a obra de Dante se intitule “A Divina Comédia”, ou seja, a “narrativa dramática” que nos conduz à emoção, a qual não pode deixar de produzir-se quando as sublimidades do verso nos levam, em círculos lógicos, epopeicos, das danações dos Infernos à luminosa verdade do Céu. A comédia, a verdadeira, aquela que retomava e ampliava o eco das origens, essa ficou-se pela praça pública, nas momices dos “jongleurs” e, mais tarde, nas tropelias dos bobos da corte. E esse povo indiferenciado riu tanto e tanto que, precisamente também pelos fins da Idade Média e pelos alvores da Modernidade, ficaram criadas as condições para que se originasse um prodígio de sátira, se engendrasse uma gargalhada imensa e uma gigantesca torrente de graça, onde ficaram para sempre soterradas as seriedades e gravidades de todos aqueles que, por não serem povo, jamais souberam rir. Foi então que nasceu a obra de Rabelais. Foi então que o riso ganhou tais proporções que nem um Homero se atreveria a imitar.

12 de setembro de 2011

O MEU ARQUIVO DE IMAGENS 2. Uma sátira pagã

Foi em 1857 que se descobriu, em escavações arqueológicas que estavam a ser feitas no Monte Palatino, em Roma, o desenho ou “grafitti” aqui reproduzido. Ele encontrava-se miraculosamente preservado na “Domus Gelotiana”, uma vivenda que o Imperador Calígula adquirira para fazer parte das suas instalações imperiais. O desenho data, assim, do século III d. C. Representa o corpo de um homem crucificado, com a particularidade de ser dotado de uma cabeça de burro. Em frente aparece-nos um outro homem, em postura de adoração, com a seguinte inscrição em grego antigo : “Alexameno venera [o seu] deus”. É, manifestamente, uma sátira pagã à nova religião cristã. Mas porquê a figura do crucificado com uma cabeça de burro? É necessário ponderar que, na altura, os conteúdos doutrinais do Cristianismo ainda eram alvo de grandes ataques por parte dos cultos pagãos. Nem sequer se diferenciava o judeísmo do cristianismo. Em Roma, ecoava a velha calúnia de que os judeus adoravam um asno. Por isso, Jesus é representado na cruz com a cabeça de um burro. O cristão Tertuliano confirma, nos seus textos, esta convicção pagã de que os cristãos também adoravam um burro.

7 de setembro de 2011

O MEU ARQUIVO DE IMAGENS 1. A Dama de Tebas

Sir Gardner Wilkinson revela-nos, na sua obra "Manners and Customs of the Ancient Egyptians" uma série de figuras históricas gravadas num dos grandes monumentos de Tebas. Uma dessas gravações representa uma festa de vinho, frequentada por ambos os sexos. Uma mulher, seguramente de bom nível social, é apresentada a vomitar, enquanto uma serva, colocada por detrás dela, procura auxiliá-la nesse momento embaraçoso e difícil.

Esta imagem fornece-nos abundante material de reflexão sobre a especificidade dos comportamentos "de género".

2 de setembro de 2011

MUNCH E A ANSIEDADE

Há gente em busca de si, depois de lhe terem prometido o Paraíso. Antes da promessa, a vida que se vivia era normal e sem sobressaltos. Também sem muitos sonhos, certamente. O sonho é aquele pedaço de alma que se recolhe no sudário do “talvez seja, talvez possa ser, um dia será”. Mas é, em tal caso, apenas a esperança contida nos limites da descrença, que , apesar de tudo, ainda faz correr as imagens do mito na tela da ilusão. Durante a promessa, tudo pareceu alcançável. Por isso, os olhos reverberam de crença e de paixão. Prometer é criar sempre uma Juventude artificial, de céu sempre azul e de poentes afogueados. E um dia a promessa falha. Instala-se então o lento morticínio das faces bambas, arroxeadas, e dos olhos vazios. O que impressiona é essa distância que os olhos fitam sem ver. Sim, decerto uma ponte cheia de gente vazia. Uma ponte sem gente, embora pisada por centenas de pés. E um céu lívido, nos antípodas dessa promessa incumprida : tal como esta “Ansiedade”, que Edvard Munch um dia pintou.