26 de junho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXVII


XXVII - O ULTIMATUM DO POVO

Na nota diplomática entregue por Mr. Petre ao governo português, nesse infausto 11 de Janeiro de 1890, não se exteriorizava apenas o desprezo de uma nacionalidade próspera e forte por outra empobrecida e fragilizada. Levava-se a diferença de posições ao auge da ameaça, ao dizer-se que o vaso de guerra Enchantress, às ordens do Almirantado britânico, estava fundeado em Vigo, aguardando ordens. Não se poderia utilizar linguagem mais directa, vexatória e brutal. Foi esse desprimor linguístico para com Portugal, foi decerto essa leonina manifestação de sobranceria, que mobilizou quase instantaneamente os estratos populares.

Mas é sabido que o Povo, abandonado ao acaso das suas emoções imediatas, se perde no florilégio verbalista, na grandiloquente tirada patriótica, na movimentação inconsequente, no alarido avulso. O jornalista João Chagas, testemunha presencial deste choque popular provocado pelo Ultimatum, deu testemunho de tal estado de espírito, ao escrever no seu Diário de um condenado político: “O que eu esperava nunca esteve bem definido no meu espírito, mas não era por certo essa ensurdecedora gritaria de rua”.

A frustração impeliu as turbas lisbonenses para deploráveis actos de violência. O jornal Novidades, ligado ao Partido Progressista, procurou justificar a pronta submissão do governo português à vontade de Salisbury , alegando que as nossas autoridades coloniais tinham assinalado movimentações ameaçadoras de vasos de guerra britânicos nas costas de Moçambique, Cabo Verde e Gibraltar. Logo multidões enfurecidas trataram de estilhaçar os vidros desse periódico. Idênticas depredações foram cometidas na residência de Barros Gomes, ministro dos Estrangeiros, e na Legação inglesa. Nesta última, o acinte foi mais longe, pois os populares arrancaram a pedra de armas que adornava a frontaria. Inversamente, era farto o aplauso de saudação ao jornal Gazeta de Portugal, de simpatia regeneradora, e à folha republicana O Século, ambos irmanados na reclamação comum de demissão do governo progressista de José Luciano de Castro. Os súbditos da Rainha Vitória, residentes nas cidades portuguesas mais populosas, passaram a ser rudemente interpelados nas ruas e nem sequer a delicadeza da condição feminina serviu de contenção a impropérios grosseiros. Um professor de dança muito conhecido em Lisboa, Justino Soares, apressou-se a publicar na imprensa uma declaração de indisponibilidade para ensinar os passos da valsa ou de qualquer outro ritmado requebro a toda a lady que se lhe apresentasse! As lojas comerciais da Baixa esboçaram um boicote a produtos ingleses, retirando das suas montras as bebidas espirituosas provenientes de cascos londrinos e até mesmo os chapéus de coco oriundos da brumosa ilha. E o Diário de Notícias sofreu a reprovação dos que se escandalizavam por o verem persistir na publicidade a mercadorias britânicas. Provavelmente para lisonjear a anglofobia das gentes, a imprensa passou a excluir das suas colunas todos os vocábulos ingleses; assim, o Diário Ilustrado rejeitou o título da secção “High-Life”, com que designava os eventos mundanos, passando a mencioná-los sob a denominação de “Sociedade Elegante” ou de “Alta Sociedade”. Foram banidas as palavras meeting e club, para as quais se encontraram as equivalências vocabulares comício e grémio, rescendendo a um patriotismo mais vernáculo.

A própria poesia – ou a contrafacção dela – irá demonstrar a condescendência com que foi tratado este peculiar estado de espírito, singularizado como simbiose de irritabilidade frustrada e de teatralidade protagonizada por maus actores. Nesta linha, Silva Ferraz, um poeta menor do tempo, irá redigir os versos d’A infâmia. Carta a Sua Majestade El-Rei D. Carlos a propósito do conflito anglo-português. Algumas passagens são verdadeiramente pasmosas, por se equilibrarem deficientemente na corda bamba da sensatez e por induzirem mais ao riso do que à indignação. Atente-se neste “mimo”:

Não recueis, Senhor! uma lição severa

Mandai à nossa aliada, essa indomável fera,

Que para nós lançou seus olhos de milhafre,

Tentando espezinhar-nos como ao “boer” e ao cafre:

- Quebremos essa aliança, e contra a represália

Sejam nossas irmãs, a França, a Espanha e a Itália!

Guerra de morte ao infame e às loiras esterlinas,

Às rolhas, Oldton Gin, ao ferro e às margarinas:

Também neste formoso e lúcido torrão

Se fabrica cerveja e há minas de carvão!

E mostremos depois, a esses cruéis patifes,

A falta que lhes faz o Port Wine e os bifes.

O desvalimento e a impotência nacionais irão exprimir-se através do recurso ao grande gesto teatral e à emotividade gratuita, produto de uma psicologia de massas que esbraveja em público para, logo de seguida, se recolher à inércia do espaço doméstico, com o papo cheio de invectivas e as mãos cheias de vazio.

21 de junho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXVI

Esta imagem é uma reprodução truncada de um desenho satírico da autoria de Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, publicado no nº 282 do jornal Pontos nos ii, de 20 de Novembro de 1890. Nele se vê John Bull (a Grã-Bretanha) disparando, a partir de África, o seu Ultimatum sobre o velho e vacilante Portugal, representado junto à Torre de Belém. Ao lado está desenhado o novo rei D. Carlos, procurando evitar que a sua coroa lhe caia da cabeça...

XXVI - O ULTIMATUM

Quando Portugal, através das manobras diplomáticas de Barros Gomes, procurou suscitar uma “inversão de alianças”, substituindo a Grã-Bretanha pela Alemanha como potência aliada no desenvolvimento de projectos colonialistas, não curou de obter garantias formais de fidelidade futura. Firmou-se um convénio, que nos era favorável, e imaginou-se que ele vigoraria, em interpretação extensiva, para todo o futuro horizonte das nossas esperanças de apropriação.

A Inglaterra logo tratou de fazer sentir a Portugal, através de numerosos memorandos e notas diplomáticas, que não se dispunha a aceitar as nossas pretensões e que nem sequer anuiria a um processo negocial tripartido, correspondente à inclusão da Alemanha no dirimir da pendência, conforme Barros Gomes chegou a sugerir. Para o gabinete de Salisbury era óbvio que a efectividade de ocupações, imposto pelo Acto Final de Berlim, não deveria confinar-se às regiões costeiras. Para que as apropriações coloniais fossem plenamente reconhecidas, era necessário que se implantassem missões, postos administrativos e guarnições militares nas regiões mais sertanejas. Esta obrigatoriedade jogava claramente contra a situação portuguesa, atendendo à sua extrema e irrecuperável penúria financeira.

Este azedo diálogo entre Portugal e a Grã-Bretanha decorreu sigilosamente. A opinião pública ignorava totalmente a gravidade da situação, uma vez que apenas uns raros jornais republicanos aludiam, em tom vago, às divergências anglo-lusas. Cecil Rhodes, atentíssimo à dinâmica dos interesses em jogo, tratou de alcançar, no terreno, as vantagens requeridas pela grandeza quase infinita da sua ambição. Logo se apercebeu que o seu projecto requeria imperativamente que o território dos Matabeles, entre o Limpopo e o Zambeze, passasse para a órbita britânica de influência, para que se consumasse no futuro o projecto ferroviário de ligação entre a colónia do Cabo e a capital do Egipto. Se vingassem as esperanças lusas do mapa cor-de-rosa, estariam comprometidos os eixos de expansão em que assentava o plano de Rhodes. Por isso, a Grã-Bretanha não descurou o estreitamento de relações com o rei dos Matabeles, Lo Bengula, com quem veio a estabelecer tratados de paz e de amizade. A “nossa mais antiga aliada” tratou também de armar e municiar tribos hostis ao domínio português. Foi o caso da comunidade indígena dos Macololos, na região do Chire. Os agentes de Cecil Rhodes aconselharam o rei matabele a invocar direitos sobre o “país” dos Machonas e sobre uma vasta zona adjacente, contígua ao planalto de Manica, em pleno território moçambicano, notificando Lisboa de que tanto os Matabeles como os Machonas se encontravam sob a sua protecção. Era um golpe mortal que assim se desferia sobre o róseo sonho português de criar “um novo Brasil em África”. A coroar todo este cuidadoso planeamento, o governo inglês concedeu pulso livre à Chartered de Cecil Rhodes para irromper e se impor nas vastíssimas zonas de que nasceriam as Rodésias.

A contestação de Portugal foi selectiva. Procurou contrariar os direitos britânicos de protectorado sobre os Machonas e fez seguir para o Alto Chire expedições militares, chefiadas por Serpa Pinto e por Henrique de Paiva Couceiro. Era dito, nos documentos da diplomacia, que Portugal apenas desejava construir uma via férrea que unisse o Niassa ao Zambeze. Mas a Grã-Bretanha desconfiava que os meios militares utilizados sobre territórios reclamados pela Chartered encobrissem o ardil de erigir uma situação definitiva e inapelável.

Em Outubro de 1889, Portugal vibrou com a vitória militar alcançada por Serpa Pinto e por João de Azevedo Coutinho sobre os Macololos. O governo inglês rugiu de indignação, mas Barros Gomes, supondo-se suficientemente protegido por Bismarck, acumulou silêncios e recorreu a várias manobras de dilação.

A 11 de Janeiro de 1890, o ministro plenipotenciário britânico acreditado em Portugal, Mr. Petre, entregou ao governo português um lacónico texto, com estes dizeres: “O que o Governo de Sua Majestade deseja e em que insiste é o seguinte. Que se enviem ao governador de Moçambique instruções telegráficas imediatas, para que todas e quaisquer forças militares portuguesas, actualmente no Chire e nos países dos Macololos e Machonas, se retirem. O Governo de Sua Majestade entende que, sem isto,as seguranças dadas pelo governo português são ilusórias. Mr. Petre ver-se-á obrigado , à vista das suas instruções, a deixar imediatamente Lisboa com todos os membros da sua legação, se uma resposta satisfatória à precedente intimação não for por ele recebida esta tarde; e o navio de Sua Majestade Enchantress está em Vigo esperando as suas ordens. Legação Britânica, 11 de Janeiro de 1890”.

A esta nota diplomática foi dado o nome de Ultimato Inglês. Começou aqui, verdadeiramente, o colapso da monarquia constitucional portuguesa.

15 de junho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXV


XXV - CECIL RHODES E O PEÃO PORTUGUÊS

O expansionismo colonial britânico não poderá ser entendido sem que seja referida a figura de Cecil John Rhodes. Quem era este homem e qual foi o seu principal projecto de vida? Nasceu no seio de uma família modesta, em Bishop Stortford, tendo começado por encarar a hipótese de se fazer pastor eclesiástico. Era frágil e achacado, pelo que na altura ninguém poderia imaginar que a sua debilidade física dava guarida a uma vontade de ferro e a uma capacidade de decisão sem quebranto. A rejeição da vida religiosa repunha com renovada acuidade o problema da sua sobrevivência. Mas como um seu irmão se fizera agricultor na África do Sul, foi para lá que Cecil Rhodes se dirigiu. Porém, a sua falta de robustez física não quadrava com o exigente e duro trabalho da terra. A descoberta de riquíssimos recursos de diamantes na região de Kimberley revolucionou radicalmente o modo de vida de Rhodes. Fez-se negociante e explorador dessa preciosa pedraria, comprando concessões, assalariando mineiros e angariando um invejável pecúlio.

Revelou-se, a partir desta altura, o fogo da desmedida ambição que o abrasava. Regressou várias vezes a Londres e tornou-se notado nos mais importantes círculos políticos da melhor sociedade vitoriana. Arrebatava auditórios com promessas de incomparável grandeza para uma Grã-Bretanha que já era a “rainha dos mares” e que deveria vir a ser a indiscutível, arbitral e omnipresente potência colonial africana. Fizeram-no deputado cerca de cinco anos antes do Congresso Colonial de Berlim. Nesse ínterim, aquele que viria a ser mencionado como o “Napoleão do Cabo” desenhou na mente e tentou concretizar no terreno um fantástico desígnio imperial. Tratava-se de consolidar domínios, negociar tratados e aniquilar oposições para que pudesse corporizar-se, em completa subordinação ao hegemonismo britânico, um eixo transafricano de influência que ligasse, sem solução de continuidade, a colónia do Cabo ao protectorado de Egipto. A corte de Londres rendeu-se-lhe incondicionalmente. Não admira que assim tivesse sido: se Cecil Rhodes conseguisse realizar a sua espantosa e portentosa visão, o melhor das riquezas africanas seria despejado na cornucópia mercantil do seu país. Por isso Londres o elevaria, em 1890, a governador do Cabo, reconhecendo nele o mandatário insubstituível da sua estratégia para a África meridional. Quando Bismarck convocou para Berlim os negociadores internacionais, já Cecil Rhodes estava em vias de constituir o protectorado da Bechuanalândia, ampliando a respectiva soberania do Zambeze ao Orange. Este protectorado tinha um valor estratégico relevante, uma vez que completava o cerco às repúblicas boers e impedia, cumulativamente, o crescimento para leste do território alemão do Sudoeste Africano. Rhodes iria também criar uma poderosa e manobradora companhia majestática, a Chartered, espécie de entidade de negociação com os potentados indígenas, cujos métodos vieram a oscilar entre a ameaça mais despudorada e a mais explícita chantagem.

Através da Chartered , Cecil Rhodes empurrou os seus agentes cada vez mais para o norte e para o ocidente de Moçambique. Tratava-se agora de alcançar o domínio da Niassalândia, do reino dos Matabeles e do “país” dos Machonas. A importância estratégica do domínio da Zambézia, a ser alcançado, consistia na seguinte evidência: uma vez contidos os interesses alemães, neutralizados os estados boers e dominados os gentios mais recalcitrantes, estavam finalmente reunidas as condições que tornavam possível a construção de uma via férrea com financiamentos britânicos, muito propalada ao tempo, a qual uniria o Cabo ao Cairo. Competia ao “Napoleão do Cabo” empreender e tornar viável esta nova campanha, em direcção ao Egipto.

Estes dados ajudam a compreender a bonomia com que Bismarck acolheu o convénio luso-alemão do qual constava o nosso mapa cor-de-rosa. Essa contemporização não derivava de uma especial simpatia para com Portugal ou – ao contrário das esperanças dos nossos governantes … – de um sincero desejo de fazer substituir a Inglaterra pela Alemanha como aliada preferencial do reino lusitano. As motivações de Bismarck eram bem mais pragmáticas: como os planos germânicos haviam ficado enfraquecidos com a tomada da Bechuanalândia pelos ingleses, o arguto chanceler ia tentar contrariar a lógica britânica com o recurso à cartada portuguesa. Se outro efeito não pudesse obter, alcançaria, pelo menos, o da temporária contenção da hegemonia anglo-saxónica na região.

Portugal era, portanto, um simples peão, desvalido e isolado, neste jogo de mestres. Poucos se deram conta desta instrumentalização. Por isso seria tão desencantado o nosso próximo despertar deste sonho pintado a rosa.

10 de junho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXIV


XXIV - UM SONHO PINTADO A ROSA

A obrigatoriedade da ocupação efectiva sobre os domínios coloniais doravante reivindicados, estabelecida pelo artº 35º do Acto Final da Conferência de Berlim, suscitou em Portugal reacções contraditórias. Houve quem pensasse que o repto se situava muito acima da nossa capacidade de resposta e que seria até sensato que Portugal abdicasse de muito do que já alcançara. Ferreira de Almeida, que viria a ser ministro da Marinha e Colónias na ditadura regeneradora do gabinete Hintze Ribeiro-João Franco, de 1894-1895, apresentará às Câmaras legislativas, em 1888, um projecto de lei que recomendava “a centralização e redução do nosso domínio colonial”.  Persistiu nesta opinião ao longo do tempo, de tal sorte que em 1890 defenderia sem ambiguidades a venda de Moçambique, Guiné, Ajudá, Cabinda, Macau e Timor, por entender que umas representavam um incomportável sorvedouro de dinheiros públicos, sendo outras simplesmente inúteis e inaproveitáveis. O próprio Oliveira Martins, que todos referenciavam como uma das figuras mais prestigiosas da sua geração, opinava que se deveria encerrar rapidamente e com honra o nosso contencioso colonial com a Inglaterra sobre o traçado das fronteiras moçambicanas. Feito isto, o país estaria então preparado para negociar vantajosamente os recursos coloniais com certas companhias majestáticas, guardando para si o desenvolvimento de Angola e fazendo dela o emblema da sua vocação colonial.

Os jornais republicanos iam acompanhando o debate interno, procurando capitalizar em seu proveito os sintomas de cedência ao direito dos mais fortes e os sinais de capitulação às voracidades internacionais. A questão colonial ofereceu ao republicanismo um novo argumento, assim expresso: as sucessivas gerências governamentais monárquicas comprovavam uma lastimável inaptidão administrativa em tudo o que respeitava à dominação colonial e à exploração dos recursos em jogo. Insistindo infatigavelmente neste argumento, o republicanismo – mesmo que apenas o pressentisse – forçava os governantes monárquicos a escolher entre dois males: ou o da vergonha decorrente de cedências reiteradas ou o do risco inerente a projectos insustentáveis e megalómanos.

Eram antigas as ambições visionárias de unir Angola à contra-costa moçambicana. Nesse sentido se haviam pronunciado, ainda no decurso do século XVIII, homens da estatura de um Francisco de Sousa Coutinho ou de um Francisco José de Lacerda e Almeida. Mas agora desabrochava com mais intensidade, no seio dos adeptos monárquicos, esta utópica flor de esperança. Pois não era onírica, virtual e simplesmente imaginária a ambição de fazer expandir uma nacionalidade em crise para zonas africanas problemáticas, no auge da guerra em que divergiam potentes interesses internacionais? Com que miseráveis colonos – os que, cabisbaixos, embarcavam, ano após ano … para o Brasil – se cumpriria tamanho desígnio? E com que capitais públicos? E com que unanimidade de opinião? No entanto, parece situar-se neste rumo o recrudescimento da exploração de zonas nevrálgicas sertanejas, localizadas na continuidade do eixo Angola-Moçambique, entre 1884 e 1889. A Sociedade de Geografia foi dando alento e cobertura às explorações e surtidas de reconhecimento geográfico a que se abalançaram Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens, Serpa Pinto, Augusto Cardoso, Henrique de Carvalho, António Maria Cardoso, Vítor Cordon e Paiva de Andrada. Não ilustrariam tais demandas o desejo de consolidar no terreno, obedecendo agora à nova legislação internacional, o projecto de expansão que alguns governantes já admitiam abertamente na sua epistolografia? Atente-se no que escreveu o então ministro dos Negócios Estrangeiros, José Vicente Barbosa du Bocage, dirigindo-se ao seu colega da pasta da Marinha e Ultramar, Manuel Pinheiro Chagas, em carta datada de 15 de Maio de 1885 : “Unir Angola e Moçambique, cortar de um lado ao outro o continente africano, foi sonho dos nossos maiores; nobre aspiração a que algumas portentosas viagens deram alimento”. E mais à frente concluía que “o momento parece azado para empreender a realização da sonhada obra”.

Em fins de 1885 Portugal negociou com a França, através do nosso ministro plenipotenciário em Paris, Andrade Corvo, uma convenção que reconhecia certos direitos franceses na Guiné contra o reconhecimento do protectorado português em regiões localizadas entre Angola e Moçambique. Por outro lado, quando se tratou de delimitar as fronteiras do Sudoeste Africano alemão com Angola, que integrava na colónia germânica uma parcela territorial entre o Cabo Frio e o rio Cunene, a convenção diplomática respectiva especificava, através de um mapa colorido a rosa, a soberania lusitana sobre zonas que também constavam grosso modo do acordo luso-francês e que denunciavam o propósito de materializar o tal sonho a que se referira Barbosa du Bocage. Foi Henrique de Barros Gomes, que entretanto o substituíra na pasta do Estrangeiros, mas agora no gabinete progressista de José Luciano de Castro, quem levou os dois convénios à ratificação parlamentar, fazendo-os acompanhar desse potencial e diáfano mapa cor-de-rosa.

Esta pretensão mereceria a concordância dos britânicos? Ninguém se iludia a tal respeito e era dada como certa a reacção negativa do governo de Londres. Assim sendo, porquê insistir? Porque talvez a França, talvez sobretudo a Alemanha, nos viessem proteger. Talvez … talvez … 

3 de junho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXIII

XXIII - A CONFERÊNCIA COLONIAL DE BERLIM

As desencontradas ambições que se soltaram na vasta região da bacia do Congo criaram um emaranhado de contradições e reclamações que envolveram a Bélgica, a França, a Grã-Bretanha, a Alemanha e Portugal. De todas estas potências, Portugal era a que se apresentava com maiores fragilidades. Sabia-se nos conciliábulos internacionais que o nosso país apresentava insuperáveis debilidades de gestão financeira e, por isso, eram vorazes as ambições que se alinhavam externamente, prontas a mover um ataque fulminante ao apetecível património colonial sob a sua jurisdição.

As pretensões portuguesas inscreviam-se numa tela que era também colorida por apetites contraditórios. A Grã-Bretanha almejava manter uma hegemonia que lhe garantisse o ataque e a ulterior neutralização dos estados boers. A Bélgica, sob o comando imperial de Leopoldo II, desejava que a Associação Internacional do Congo fosse reconhecida como pessoa jurídica internacional, viabilizando assim a constituição de um Estado do Congo que pudesse evoluir para uma situação de puro colonialismo. A Alemanha, acabada de chegar à boca de cena do teatro africano, forcejava por conter a hegemonia britânica e por evitar que os espaços de Angola e de Moçambique pudessem ampliar-se à custa da sua própria implantação. A França, ainda ferida pela derrota sofrida na recente guerra contra os prussianos, desejava firmar-se na região equatorial e ambicionava ser reconhecida como potência arbitral. Portugal apenas esperava que os seus direitos históricos não fossem contestados e que os eixos possíveis do sua expansão, para norte e nordeste de Angola, pudessem ser reconhecidos pela comunidade internacional.

Partiu de Bismarck a iniciativa de reunir em Berlim uma Conferência internacional, aberta a potências europeias e trans-europeias, com o fito de fixar, de uma vez por todas, os critérios de apropriação colonialista. Este conclave decorreu na capital germânica entre 15 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885.  

Que dispunha o direito internacional sobre esta matéria? Determinava que o direito histórico, ou seja, a prioridade das descobertas, pudesse ser invocado para firmar soberanias locais. Isto significava que os traços monumentais ou documentais sobre a descoberta dos sucessivos recortes da costa africana pudessem ser apontados como indícios probatórios e caucionadores de possíveis alargamentos de zonas de influência, expandindo-se a partir das regiões ribeirinhas para o interior do continente. O ordenamento jurídico internacional, tal como se perfilava, era francamente desfavorável aos interesses dos mais recentes protagonistas da aventura imperialista. A Bélgica não podia invocar direitos históricos, encontrando-se a Alemanha na mesma situação. Por outro lado, a manutenção do direito internacional oferecia a Portugal um primado que os apetites dos recém-chegados tinham por obsoleto, atendendo à circunstância de todos se encontrarem inteirados acerca da profunda decadência e da insuperável dependência financeira do reino lusitano.

Estes dados ajudam-nos a compreender o despudor com que os nossos representantes foram interpelados, no decurso da Conferência Colonial de Berlim. A nossa embaixada diplomática era chefiada pelo Marquês de Penafiel, incluindo também os nomes de Luciano Cordeiro, António de Serpa Pimentel, Carlos Roma du Bocage e do Conde de S. Mamede. As cláusulas que tinham sido firmadas com a Grã-Bretanha no Tratado do Zaire, em Fevereiro de 1884, foram imediatamente postas em causa pela Bélgica e pela França. Estas potências davam como precárias as apropriações realizadas por Portugal em Molembo, Cabinda e Noki. Os argumentos apresentados eram capciosos, mas aparentemente plausíveis: dizia-se que iria nascer na bacia do Congo um grandioso e exemplar Estado Livre, o qual iria apresentar-se como laboratório de uma suposta e delirante experiência de cidadania indígena; além disto, arguia-se que tal Estado apresentaria um estatuto de neutralidade compatível com a mais generosa liberdade de comércio, de missionação e de educação autóctone, de tal modo que este prodígio de concertação internacional funcionaria como salvaguarda e garante da paz europeia. Este embuste, esta risível demonstração de reserva mental, esta clamorosa demonstração do direito da força apresentado sob a capa do direito da justiça (pobre Justiça!) serviu de argumento aos embaixadores da França e dos Estados Unidos da América, os quais se prestaram a ser os valets de chambre das intenções de Leopoldo II da Bélgica. Por isso, um dos resultados da Conferência Colonial de Berlim consistiu na institucionalização do Estado “Livre” do Congo. Esta “liberdade” recebia a água benta do reconhecimento do poder pessoal de Leopoldo II sobre a imensidade territorial do futuro Congo Belga. E quanto aos protestos filantrópicos e anti-esclavagistas do portentoso empreendimento, que falem as grilhetas, os açoites, os assassínios, as violações, os massacres, as violências sem perdão e as incomensuráveis atrocidades que os colonos dessa região – belgas e europeus – desfecharam sobre as inermes e indefesas populações indígenas … Este colonialismo teve o significado da ignomínia pura e simples. Jamais a Bélgica, em primeira linha, e a Europa, acessoriamente, poderão lavar-se de tamanha baixeza. As fezes do colonialismo europeu ainda fedem, ainda exalam pestilências insuportáveis na bacia do Congo. Comparada com tal realidade, a do colonialismo português marca a distância do incomensurável. Portugal colonizou melhor, mais humanamente e mais desinteressadamente – dentro dos limites da apregoada “intenção civilizacional” e no contexto da imperfeita cupidez humana – do que quaisquer outras potências coloniais europeias. É obrigatório que isto seja dito, alto e bom som.

A embaixada portuguesa defendeu galhardamente as suas prioridades, mantendo, ao menos no curto prazo, as posições reputadas fundamentais à integridade do património colonial herdado. Mas o artigo 35º do Acto Final da Conferência de Berlim estabeleceu que passaria a ser insuficiente a invocação de direitos históricos para legitimar actos de apropriação colonial. Tornar-se-ia necessário a efectiva ocupação territorial, ou seja, a transferência real de contingentes demográficos que estabelecessem o princípio da autoridade nos territórios a anexar colonialmente; e a par desta garantia de segurança para colonizadores e mercadorias, também se preconizava a liberdade de missionação e de culto religioso. Esta última determinação não era ingénua, tanto mais que sobre as zonas litigiosas foram literalmente despejadas legiões de padres missionários cuja missão era mais a de fazer cumprir ordens governamentais do que a de difundir evangelhos divinos.

Portugal viu-se assim confrontado com desafios que superavam em muito a sua capacidade de resposta. Faltavam os meios materiais para tão magna empresa. Aliás, mesmo que os houvesse, seria necessário inverter as vagas migrantes, deslocando-as do destino tradicional brasileiro para a alternativa africana, encarada como mais incerta e mais perigosa. Exigia-se da Administração monárquica, nesta hora de incertezas, uma grande frieza de avaliação e uma ponderação realista do nosso peso real no concerto das potências internacionais. Era necessário conter o sonho, refrear a utopia, moderar, numa palavra, os mais persistentes traços da aventurosa alma lusitana. Mas não seria isto a negação de nós mesmos?