As pretensões portuguesas inscreviam-se numa tela que era também colorida por apetites contraditórios. A Grã-Bretanha almejava manter uma hegemonia que lhe garantisse o ataque e a ulterior neutralização dos estados boers. A Bélgica, sob o comando imperial de Leopoldo II, desejava que a Associação Internacional do Congo fosse reconhecida como pessoa jurídica internacional, viabilizando assim a constituição de um Estado do Congo que pudesse evoluir para uma situação de puro colonialismo. A Alemanha, acabada de chegar à boca de cena do teatro africano, forcejava por conter a hegemonia britânica e por evitar que os espaços de Angola e de Moçambique pudessem ampliar-se à custa da sua própria implantação. A França, ainda ferida pela derrota sofrida na recente guerra contra os prussianos, desejava firmar-se na região equatorial e ambicionava ser reconhecida como potência arbitral. Portugal apenas esperava que os seus direitos históricos não fossem contestados e que os eixos possíveis do sua expansão, para norte e nordeste de Angola, pudessem ser reconhecidos pela comunidade internacional.
Partiu de Bismarck a iniciativa de reunir em Berlim uma Conferência internacional, aberta a potências europeias e trans-europeias, com o fito de fixar, de uma vez por todas, os critérios de apropriação colonialista. Este conclave decorreu na capital germânica entre 15 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885.
Que dispunha o direito internacional sobre esta matéria? Determinava que o direito histórico, ou seja, a prioridade das descobertas, pudesse ser invocado para firmar soberanias locais. Isto significava que os traços monumentais ou documentais sobre a descoberta dos sucessivos recortes da costa africana pudessem ser apontados como indícios probatórios e caucionadores de possíveis alargamentos de zonas de influência, expandindo-se a partir das regiões ribeirinhas para o interior do continente. O ordenamento jurídico internacional, tal como se perfilava, era francamente desfavorável aos interesses dos mais recentes protagonistas da aventura imperialista. A Bélgica não podia invocar direitos históricos, encontrando-se a Alemanha na mesma situação. Por outro lado, a manutenção do direito internacional oferecia a Portugal um primado que os apetites dos recém-chegados tinham por obsoleto, atendendo à circunstância de todos se encontrarem inteirados acerca da profunda decadência e da insuperável dependência financeira do reino lusitano.
Estes dados ajudam-nos a compreender o despudor com que os nossos representantes foram interpelados, no decurso da Conferência Colonial de Berlim. A nossa embaixada diplomática era chefiada pelo Marquês de Penafiel, incluindo também os nomes de Luciano Cordeiro, António de Serpa Pimentel, Carlos Roma du Bocage e do Conde de S. Mamede. As cláusulas que tinham sido firmadas com a Grã-Bretanha no Tratado do Zaire, em Fevereiro de 1884, foram imediatamente postas em causa pela Bélgica e pela França. Estas potências davam como precárias as apropriações realizadas por Portugal em Molembo, Cabinda e Noki. Os argumentos apresentados eram capciosos, mas aparentemente plausíveis: dizia-se que iria nascer na bacia do Congo um grandioso e exemplar Estado Livre, o qual iria apresentar-se como laboratório de uma suposta e delirante experiência de cidadania indígena; além disto, arguia-se que tal Estado apresentaria um estatuto de neutralidade compatível com a mais generosa liberdade de comércio, de missionação e de educação autóctone, de tal modo que este prodígio de concertação internacional funcionaria como salvaguarda e garante da paz europeia. Este embuste, esta risível demonstração de reserva mental, esta clamorosa demonstração do direito da força apresentado sob a capa do direito da justiça (pobre Justiça!) serviu de argumento aos embaixadores da França e dos Estados Unidos da América, os quais se prestaram a ser os valets de chambre das intenções de Leopoldo II da Bélgica. Por isso, um dos resultados da Conferência Colonial de Berlim consistiu na institucionalização do Estado “Livre” do Congo. Esta “liberdade” recebia a água benta do reconhecimento do poder pessoal de Leopoldo II sobre a imensidade territorial do futuro Congo Belga. E quanto aos protestos filantrópicos e anti-esclavagistas do portentoso empreendimento, que falem as grilhetas, os açoites, os assassínios, as violações, os massacres, as violências sem perdão e as incomensuráveis atrocidades que os colonos dessa região – belgas e europeus – desfecharam sobre as inermes e indefesas populações indígenas … Este colonialismo teve o significado da ignomínia pura e simples. Jamais a Bélgica, em primeira linha, e a Europa, acessoriamente, poderão lavar-se de tamanha baixeza. As fezes do colonialismo europeu ainda fedem, ainda exalam pestilências insuportáveis na bacia do Congo. Comparada com tal realidade, a do colonialismo português marca a distância do incomensurável. Portugal colonizou melhor, mais humanamente e mais desinteressadamente – dentro dos limites da apregoada “intenção civilizacional” e no contexto da imperfeita cupidez humana – do que quaisquer outras potências coloniais europeias. É obrigatório que isto seja dito, alto e bom som.
A embaixada portuguesa defendeu galhardamente as suas prioridades, mantendo, ao menos no curto prazo, as posições reputadas fundamentais à integridade do património colonial herdado. Mas o artigo 35º do Acto Final da Conferência de Berlim estabeleceu que passaria a ser insuficiente a invocação de direitos históricos para legitimar actos de apropriação colonial. Tornar-se-ia necessário a efectiva ocupação territorial, ou seja, a transferência real de contingentes demográficos que estabelecessem o princípio da autoridade nos territórios a anexar colonialmente; e a par desta garantia de segurança para colonizadores e mercadorias, também se preconizava a liberdade de missionação e de culto religioso. Esta última determinação não era ingénua, tanto mais que sobre as zonas litigiosas foram literalmente despejadas legiões de padres missionários cuja missão era mais a de fazer cumprir ordens governamentais do que a de difundir evangelhos divinos.
Portugal viu-se assim confrontado com desafios que superavam em muito a sua capacidade de resposta. Faltavam os meios materiais para tão magna empresa. Aliás, mesmo que os houvesse, seria necessário inverter as vagas migrantes, deslocando-as do destino tradicional brasileiro para a alternativa africana, encarada como mais incerta e mais perigosa. Exigia-se da Administração monárquica, nesta hora de incertezas, uma grande frieza de avaliação e uma ponderação realista do nosso peso real no concerto das potências internacionais. Era necessário conter o sonho, refrear a utopia, moderar, numa palavra, os mais persistentes traços da aventurosa alma lusitana. Mas não seria isto a negação de nós mesmos?
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