24 de julho de 2012

HISTÓRIA DE UMA VINGANÇA

Eram da mesma vilória, mas no mútuo conhecimento reinava alguma frieza. Lúcio nascera no interior de uma família abastada e com alguma influência no lugar. O pai era Inspector do Ensino Secundário e produzia apreciados néctares vínicos, com uvas colhidas em propriedades provenientes de heranças de família. Julião era filho do chefe da estação de comboios e sabia-se que a incontestável dignidade do núcleo familiar dependia muito da sensatez com que a sua mãe administrava o magro ordenado do marido. Lúcio e Julião tinham frequentado a mesma escola, nela aprendendo ambos as primeiras letras. Mas o primeiro sempre fora tratado pelo velho professor Arménio com manifesta benevolência, sendo impensável que alguma distracção ou lapso de memória dessem lugar à mais temida das punições : as vergastadas desferidas com uma cana maleável, que o Mestre-Escola Arménio manejava com um zelo entusiástico e indicativo de uma alma torcionária. Julião, pelo contrário, conheceu em duas ou três situações o silvo desse “Vime Vingador” - ou apenas “VV” - , designações que Mestre Arménio popularizara junto da mão-cheia de rapazes sobre os quais ia exercendo, selectivamente, a sua férula eivada de sadismo. Chegado o tempo, anos volvidos, Lúcio partiu para a Universidade de Coimbra, com o fito de cursar Medicina. Julião, pelo contrário, encaminhou-se para uma Escola Comercial, com pretensões a que pudesse fazer-se um contabilista rigoroso. Era, em ambos, o fim da adolescência e da sua psicologia complicada, por vezes até contraditória. Foi no tempo em que ambos se interessaram pela Alzira, a qual morava na casa de umas tias, a meia distância dos domicílios destes pretendentes. Os pais de Alzira haviam partido há alguns anos para Luanda, deixando essa filha única aos cuidados das irmãs da mãe, as quais geriam com extraordinária competência uma casa de comércio de retrosaria e bijuteria fina. Sabia-se, no lugar, que essas tias não sofriam o menor constrangimento financeiro em relação aos gastos de Alzira, uma vez que as quantias enviadas mensalmente de Luanda eram incontestavelmente generosas. Quando Alzira pressentiu o interesse afectivo que desencadeara nos dois rivais, o seu forte sentido das conveniências e das realidades levaram-na a manter uma postura de equidistância em relação a ambos. Achava que ainda era muito nova para assumir compromissos e, valha a verdade, nenhum dos pretendentes exerceu sobre ela uma impressão avassaladora. Caprichava em manter a correcção quer perante as ousadias de Lúcio, quer perante os tímidos vagidos de alma de Julião. Esta atitude foi interpretada por um e outro como um estado de indecisão, quando verdadeiramente não era mais do que uma manobra de evasão. Foi então que a guerra rebentou nas colónias. Toda a gente do lugar comentou detidamente os nefastos efeitos do conflito na economia privada dos pais de Alzira. Fosse ou não por isso, a verdade é que tanto Lúcio como Julião decidiram interromper as suas formações académicas e profissionalizantes, oferecendo-se voluntariamente para o antecipado cumprimento do serviço militar. Os caprichos da sorte ditaram que um e outro fossem destacados para Angola no mesmo pelotão, mas em posições hierárquicas distintas, uma vez que o alferes Lúcio preponderava necessariamente sobre o cabo Julião. As coisas complicaram-se mais, nas relações entre ambos, quando o pelotão do então tenente miliciano Lúcio foi destacado para uma zona de intensa actividade bélica. É que todos estranharam que fossem sistematicamente distribuídas ao cabo Julião as missões mais ingratas e, dentro da coluna, as posições de maior risco. Ninguém viu nunca o arejo de um sorriso ou de uma familiaridade entre dois combatentes que, afinal, provinham da mesma terra. O Tenente Lúcio convocava o cabo Julião, dava-lhe conta do que dele se esperava e despedia-o com secura. Por sua vez, o cabo Julião salvaguardava a mais correcta das atitudes , fazia todas as continências e girava sobre os calcanhares sem a menor sombra de solidariedade. Mas eram tamanhas as exigências e os riscos e que Julião era reiteradamente exposto que os colegas acabaram por lhe atribuir a designação de Cabo Morte. Ao que este replicava: “ Descansem, rapazes, que se eu morrer levo alguém comigo”. Certa manhã, o pelotão foi todo chamado á presença do Tenente Lúcio, o qual, com vincos faciais de grande preocupação, a todos disse: - “Pelotão, na madrugada de amanhã vamos levar a cabo uma missão de enorme perigo. A zona para que fomos convocados é um vespeiro de inimigos. Há toda a probabilidade de que sejamos emboscados. Não é demais repetir o que já sabem. A nossa linguagem é o gesto. A nossa eficácia e talvez a nossa vida dependem da sincronização de movimentos. Acima de tudo, ninguém, repito, mesmo ninguém tratará um companheiro de armas pelo seu posto. Vocês já estão fartos de saber que se o combate for travado a curta distância, as armas inimigas tudo farão para poderem identificar e eliminar os mais graduados. Por isso, nesta operação, tal como nas outras, ninguém tem posto. O Cabo Julião irá na cabeça da coluna”. Uma voz indiferenciada rouquejou um “mais uma vez”, que se perdeu por entre outras vozearias. Na madrugada seguinte, a meio de uma picada densa e de progressão difícil, o pelotão viu-se atacado. Todos se colaram ao chão, como se a todos apetecesse abrir uma cova com o corpo e desaparecer daquele inferno de balas zunindo por sobre as cabeças. Um dos primeiros a cair foi o Cabo Julião, com uma bala perdida que lhe furou a barriga e o fez esvair em sangue. Mas todos confessaram, mais tarde, que o comportamento militar do Tenente Lúcio quase roçara o heroísmo, tão célere foi a deslocação para junto do Cabo moribundo. Viram-nos falar brevemente um com o outro, mas ninguém pôde escutar distintamente o conteúdo da conversa. As únicas expressões que se ouviram do Cabo Julião foram estas, gritadas com uma sonoridade insuspeitada para quem está a despedir-se da vida : - Meu Tenente, como custa morrer; meu Tenente como custa morrer; meu Tenente, como custa morrer. Tudo isto dito três vezes e em crescendo sonoro. Tudo isto antes de se escutar uma crepitação de metralhadora, disparada de muito perto, que esburacou completamente a face de Lúcio. E tudo isto aconteceu depois do que ninguém pôde escutar. É que as últimas palavras ditas por Lúcio a Julião, quando correu para ele como se o quisesse proteger, foram estas: - “Olha rapaz, no meu regresso, a Alzira vai ser minha para sempre”. Os pais de Lúcio receberam a condecoração do filho, a título póstumo, num dia de Portugal. Julião, esse, não foi condecorado. Limitou-se a morrer. Mas cumpriu a promessa: levou alguém com ele.

20 de julho de 2012

JOSÉ HERMANO SARAIVA

Aos 92 anos, finou-se o Historiador José Hermano Saraiva. Que pode dizer dele, neste solene momento do passamento, um Oficiante do mesmo Ofício? Sobretudo, que poderá dizer um estudioso da História, nascido para ela no pós-25 de Abril – eu – de um estudioso da História do pré-25 de Abril – ele ? Começarei por dizer que José Hermano Saraiva foi a “bête-noire” da Academia coimbrã, à qual eu ainda pertencia, na crise académica de 1969. Estava nessa altura na tropa, mas tal não me impediu de cumprir a greve, não me apresentando a exames. Mas tanta foi a minha militância. Nada mais fiz ( e poderia, nessas condições, fazer mais alguma coisa?). A vida política de José Hermano Saraiva aconteceu antes do 25 de Abril. Mas a sua vida intelectual aconteceu sobretudo depois do 25 de Abril. Da primeira parte, terá de se execrar a solidariedade com essa ditadura estranha e tão típica, ditadura “à portuguesa”, que alguns insistem em qualificar de “fascismo” , sem lhe adicionarem, como seria curial, a expressão “à portuguesa”. Retirado do galarim da política activa, depois da revolução de Abril, José Hermano Saraiva colocou ao serviço dos seus objectivos pessoais (e do seu pecúlio privado e familiar) a sua extraordinária capacidade mediática, o seu majestoso talento de comunicação com as massas. Tornou-se divulgador da História e das Gentes do seu País. E daí nasceram os programas televisivos “”Horizontes da Memória”, “”Gente de Paz”, “O Tempo e a Alma” e “A Alma da Gente”. Que História –ou que “estória” – era essa, aquela que divulgava José Hermano Saraiva nas suas apreciadas intervenções televisivas ? Era uma História (ou uma estória?) emocional, cheia de incursões teatralizantes, eriçada de sentimentalidade fácil, que ele ia sublinhando com as suas mãos em concha, com a firmeza do seu olhar para as câmaras, como se estivesse definitivamente seguro da honradez e probidade da sua mensagem. Ainda hoje me pergunto se José Hermano acreditava em tudo o que proferia. Junto da Torre de Belém, declarava : “Foram estas pedras, estas mesmas que aqui estão, e foi este horizonte que viram partir as naus dos Descobrimentos”. E os ouvintes olhavam as pedras, contemplavam, embasbacados, a inenarrável beleza dessa parte de Lisboa, e concluíam: “Foram aquelas pedras, tal e qual, foi aquela envolvência de luz, foi aquela magia de lugar que viu partir os mareantes, nos primórdios da aventura portuguesa”. É isto um bem? É isto um mal? É este apelo anacrónico ao que foi, assim tornado presente pelas palavras convictas mas inegavelmente demagógicas de José Hermano, um sudário de misérias ou uma intenção de mobilização da Grei? Quem se atreverá a qualificar? Relembro um depoimento da minha Irmã, já falecida, a poeta madeirense (por adopção) Maria Aurora (Aurora Carvalho Homem), sobre José Hermano Saraiva. Ele, José Hermano, tinha ido à Madeira e fizera questão de conhecer Machico. Ora, em Machico subsiste a lenda romântica de Machin, um navegante estrangeiro que se perdeu de amores trágicos por uma “indígena”. A certo momento, depois de explicar em Machico a lenda de Machin, José Hermano disse , alto e bom som, para quem o quis ouvir: “Vocês são mesmo ingénuos, nesta coisa da promoção turística !! Quando é que arranjam uma moçoila bonitona e um varão desempenado para desempenharem por aqui uma peça de teatro, interpretada em inglês e com tradução simultânea, para “inglês ver e pagar” ? Uma teatralização a “puxar à lágrima”, cheia de vivacidade e de golpes inesperados?”. Assim falava o pragmático Historiador (ou estoriador?), travestido de agente turístico. A verdade é que a lenda de Machin, nestes tempos mercantis, ainda está por “rentabilizar” (como agora deve ser dito, em linguagem troikiana …). Não se espere de mim – que sinto ter dado um contributo, mínimo que tivesse sido, para a viragem da concepção da História no pós-25 de Abril – uma diatribe a chispar ódio e baba sanguinolenta contra José Hermano Saraiva. Foram, seguramente, outras as rotas que trilhàmos. Mas, pelo menos enquanto Historiadores, por ondas diferentes, por mares tão distantes, por Adamastores de antípodas, “on cherchait le même port” ( Jacques Brel). Que a terra não seja demasiado pesada a José Hermano Saraiva. AMADEU CARVALHO HOMEM (Historiador; antigo Estudante da Academia de Coimbra, na crise académica de 1969).

15 de julho de 2012

MAR NAUFRAGADO

Perto do mar // Joga-se a nostalgia álgida // Do ficar ou partir.// Líquidos olhos de peixes // Fabulosos // Remexem-nos a alma // E curiosos // Vamos por essa margem // Impotentes de remo // Na voragem //Das âncoras internas.// E por mais ternas // Que sejam as marés,// Crescem-nos pelas pernas // As paralisias do ficar.// Somos aventureiros // Sem aventura que preste // E hoje o mar // Já não produz Cabrais. //Portugal sem mudança // É hoje apenas // A tardança // Da peste : // Povo de mareantes virtuais.

10 de julho de 2012

HUMMMM ...

Perante a pergunta daquele jornalista o Ministro tossicou, vocalizou algo parecido com um “hummm” e seguiu intrepidamente em frente. Os jornais do dia seguinte dividiram-se na interpretação dos factos. “O Clarim”, periódico claramente alinhado com os sectores mais críticos da oposição, escreveu: “Reina o desnorte completo nos arraiais da governação. Perante uma pergunta tão simples como aquela que lhe foi submetida, o incompetente Ministro verbalizou algo de incompreensível, furtando-se ao cabal esclarecimento da situação. Assim se afere da irremediável incompetência que assola os actuais detentores do mando. Pobre Portugal!”. Por seu turno, o jornal “ A Voz do Povo”, muito próximo do elenco governamental, reagiu assim ao crocitar ministerial: “ O Ministro andou bem. Há assuntos da pública administração que só ganham em ficar sob reserva. Os altos interesses da Pátria não se compaginam com excessos de curiosidade ou de impertinência provenientes de escrevinhadores de pacotilha ou de publicistas de meia-tigela. Feliz o Povo que possui responsáveis deste quilate, cautos, contidos e inteligentes”. Era este último órgão de imprensa que estava a ser lido em casa do Senhor Januário Sardinha, o qual quis verificar se a versão dos factos expostos correspondia à média do entendimento público. Chamou então o seu filho mais velho, o Gustavo, rapazote de doze anos, e interpelou-o da seguinte forma: “Olha lá, rapaz, se me for feita uma pergunta qualquer e se eu responder ‘hummm’, o que é que tu concluis?”. Ao que o filhote replicou: “ Bem, Senhor Pai, tudo vai de saber em que lugar da casa vossemecê está. Se estiver a falar no quarto com a Senhora Mãe, é sinal que nem sequer ouviu o que ela esteve a dizer. Mas se estiver no quarto de banho, aí de certeza que está de prisão de ventre”. Se o Januário Sardinha soubesse um naco de filosofia, decerto concluiria que o seu rebento havia feito uma exegese perfeita.

6 de julho de 2012

A PROVA DA CAMPAÍNHA

Dirijo-me a ti, leitor fiel, para te recordar uma breve e exemplar novela de Eça de Queirós. Intitula-se “O Mandarim” e fala-nos de um muito velho e riquíssimo chinês, que viveria nos confins dessa remota China. O desafio que o texto coloca é o seguinte. Quem tocasse uma certa campainha, no seu lugar de origem, fosse ele o mais distante que se pode conceber, colheria a culpa de consciência de provocar a morte imediata ao dito mandarim, mas também auferiria do proveito de lhe herdar a colossal fortuna. Vem isto a propósito das constantes ( e justas ) diatribes que se fazem escutar entre nós, reiteradamente, acerca da corrupção, do enriquecimento ilícito, da venalidade e de todas as misérias morais em que Portugal se atasca. Muito antes de serem lançados os impropérios nos jornais, nas revistas, nos grupos virtuais e em toda a parte, seria um óptimo exercício que cada um se perguntasse, no silêncio augusto e rigorosamente privado de cada mente, se eu, tu, meu irmão, ele, que eu vagamente conheço mas goza de boa fama, se nós todos, se vós, gente aparentemente impoluta, se eles, que desconhecemos por nunca termos visto, se todos, alguns ou muito poucos, como que por acidente, passando junto da fatal campainha, não a accionariam, não a faríamos tocar, para que pudessem ou pudéssemos herdar – se possível com absoluta impunidade – a fabulosa riqueza desse alquebrado, sumido, velhíssimo mandarim, ao qual faltariam , talvez, poucos mais dias de vida. E se eu, tu, ele, nós, vós, eles, se todos tivermos a certeza, a absoluta e definitiva certeza, de que não mataríamos implacavelmente esse decrépito mandarim, perdido no seu jardim chinês, talvez a beberricar um dos seus últimos chás, então – MAS SÓ ENTÃO – trate cada um, tratemos todos de empunhar a nossa pena e de bater a nossa tecla, para crucificar justiceiramente a corja ladra que por aí campeia.

3 de julho de 2012

REVISITA AO RELVAS

(Este é o Relvas quando está zangado com jornalistas indóceis) Estes gajos não estão a ver bem a coisa. Fartam-se de protestar só porque se fez aí uma concursata para enfermeiros ( e enfermeiras) da qual resultará o pingue pagamento de 4 euros por hora. Ora, bem vistas as coisas, 4 euros são o equivalente a 800 paus antigos e com esse dinheiro os putos daquela época fartavam-se de fazer flores. Por exemplo, aí pelos meus 14 ou 15 anos, os meus Pais entregavam-me 5 escudos por dia e ainda recomendavam que “visse como os gastava”. E depois, vejam que não é por dia – é por hora, gaita, é por hora! Se o Senhor Enfermeiro maila Senhora Enfermeira forem aplicados, trabalhando oito horas por dia, o estipêndio passa a ser de 32 euros em cada jornada, o que tem de ser qualificado como uma pequena fortuna. Bem sei que o Relvas ganha mais. Está bem, mas o Relvas é um génio, que fez um curso inteiro num ano, devido ao currículo acumulado. Por isso, não queiram comparar o Relvas ao Senhor Enfermeiro e ainda menos à Senhora Enfermeira. O Relvas não tem feito outra coisa na vida senão acumular experiência, enquanto que o Senhor Enfermeiro e a Senhora Enfermeira a única coisa que acumulam são doenças. Claro que há quem diga que o Relvas é também uma doença. Mas , está bem, é uma doença que não acumula, uma doença em exclusivo. Eu até acho que para que o Relvas se não sinta minimizado no confronto, deveria ser ele a receber 4 euros por hora. Agora, façam-lhe as contas : 32 euros por dia, se o Relvas nos fizer o favor de não congeminar ameaças a jornalistas-fêmeas para além do horário de trabalho. E, vejam bem, 960 euros por mês, já que o Relvas é aproveitado e não perde pitada nem aos domingos, nem aos feriados. 960 euros, minha gente! Ná ! O Relvas não vale tamanha fortuna ! É por estas e por outras que Portugal está como está.