20 de julho de 2012

JOSÉ HERMANO SARAIVA

Aos 92 anos, finou-se o Historiador José Hermano Saraiva. Que pode dizer dele, neste solene momento do passamento, um Oficiante do mesmo Ofício? Sobretudo, que poderá dizer um estudioso da História, nascido para ela no pós-25 de Abril – eu – de um estudioso da História do pré-25 de Abril – ele ? Começarei por dizer que José Hermano Saraiva foi a “bête-noire” da Academia coimbrã, à qual eu ainda pertencia, na crise académica de 1969. Estava nessa altura na tropa, mas tal não me impediu de cumprir a greve, não me apresentando a exames. Mas tanta foi a minha militância. Nada mais fiz ( e poderia, nessas condições, fazer mais alguma coisa?). A vida política de José Hermano Saraiva aconteceu antes do 25 de Abril. Mas a sua vida intelectual aconteceu sobretudo depois do 25 de Abril. Da primeira parte, terá de se execrar a solidariedade com essa ditadura estranha e tão típica, ditadura “à portuguesa”, que alguns insistem em qualificar de “fascismo” , sem lhe adicionarem, como seria curial, a expressão “à portuguesa”. Retirado do galarim da política activa, depois da revolução de Abril, José Hermano Saraiva colocou ao serviço dos seus objectivos pessoais (e do seu pecúlio privado e familiar) a sua extraordinária capacidade mediática, o seu majestoso talento de comunicação com as massas. Tornou-se divulgador da História e das Gentes do seu País. E daí nasceram os programas televisivos “”Horizontes da Memória”, “”Gente de Paz”, “O Tempo e a Alma” e “A Alma da Gente”. Que História –ou que “estória” – era essa, aquela que divulgava José Hermano Saraiva nas suas apreciadas intervenções televisivas ? Era uma História (ou uma estória?) emocional, cheia de incursões teatralizantes, eriçada de sentimentalidade fácil, que ele ia sublinhando com as suas mãos em concha, com a firmeza do seu olhar para as câmaras, como se estivesse definitivamente seguro da honradez e probidade da sua mensagem. Ainda hoje me pergunto se José Hermano acreditava em tudo o que proferia. Junto da Torre de Belém, declarava : “Foram estas pedras, estas mesmas que aqui estão, e foi este horizonte que viram partir as naus dos Descobrimentos”. E os ouvintes olhavam as pedras, contemplavam, embasbacados, a inenarrável beleza dessa parte de Lisboa, e concluíam: “Foram aquelas pedras, tal e qual, foi aquela envolvência de luz, foi aquela magia de lugar que viu partir os mareantes, nos primórdios da aventura portuguesa”. É isto um bem? É isto um mal? É este apelo anacrónico ao que foi, assim tornado presente pelas palavras convictas mas inegavelmente demagógicas de José Hermano, um sudário de misérias ou uma intenção de mobilização da Grei? Quem se atreverá a qualificar? Relembro um depoimento da minha Irmã, já falecida, a poeta madeirense (por adopção) Maria Aurora (Aurora Carvalho Homem), sobre José Hermano Saraiva. Ele, José Hermano, tinha ido à Madeira e fizera questão de conhecer Machico. Ora, em Machico subsiste a lenda romântica de Machin, um navegante estrangeiro que se perdeu de amores trágicos por uma “indígena”. A certo momento, depois de explicar em Machico a lenda de Machin, José Hermano disse , alto e bom som, para quem o quis ouvir: “Vocês são mesmo ingénuos, nesta coisa da promoção turística !! Quando é que arranjam uma moçoila bonitona e um varão desempenado para desempenharem por aqui uma peça de teatro, interpretada em inglês e com tradução simultânea, para “inglês ver e pagar” ? Uma teatralização a “puxar à lágrima”, cheia de vivacidade e de golpes inesperados?”. Assim falava o pragmático Historiador (ou estoriador?), travestido de agente turístico. A verdade é que a lenda de Machin, nestes tempos mercantis, ainda está por “rentabilizar” (como agora deve ser dito, em linguagem troikiana …). Não se espere de mim – que sinto ter dado um contributo, mínimo que tivesse sido, para a viragem da concepção da História no pós-25 de Abril – uma diatribe a chispar ódio e baba sanguinolenta contra José Hermano Saraiva. Foram, seguramente, outras as rotas que trilhàmos. Mas, pelo menos enquanto Historiadores, por ondas diferentes, por mares tão distantes, por Adamastores de antípodas, “on cherchait le même port” ( Jacques Brel). Que a terra não seja demasiado pesada a José Hermano Saraiva. AMADEU CARVALHO HOMEM (Historiador; antigo Estudante da Academia de Coimbra, na crise académica de 1969).

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