É nos termos estritos da espiritualidade judaica e cristã que para nós se realiza a percepção valorativa do corpo humano. O homo erectus atribuirá toda a dignidade à cabeça e irá operando, a partir dela, sucessivas desvalorizações, em sentido descendente. A cabeça acolhe o cérebro, fulcro da nobilíssima actividade pensante e garante da superioridade deste antropóide sobre todas as demais criaturas. Foi sobre o rosto que incidiram as atenções das fisiognomonias, que tanto êxito alcançaram na Idade Média (Alexandre Magno, Miguel Escoto, Pedro de Pádua) e na Renascença (Bartolomeu Coclès, João de Indaguine, mais tardiamente João Batista Della Porta) , irrompendo em pleno período contemporâneo através da obra do monge suíço Johann Kaspar Lavater. Este místico sábio procurou descortinar através da interpretação dos recortes sombreados dos perfis, os sinais indiciadores da maior ou menor aproximação dos caracteres individuais à bondade desejada por Deus. O tronco, dando guarida ao coração, é ainda entendido como parte apreciável da anatomia humana. Uma longa genealogia de médicos do século XVI – como Jerónimo Cardan, Girolamo Fracastoro, Francisco Valleriola ou Laurent Joubert – prolongaram os ensinamentos de Aristóteles e Galeno, concedendo ao coração um papel não inferior ao do cérebro. Através dos seus movimentos, os vapores subtis e voláteis dos espíritos animais, engendrados pelo sangue, eram os portadores das faculdades da alma, ordenando aos nervos e aos músculos as suas acções e reacções específicas. Abaixo do coração situa-se o estômago, órgão da materialidade sem remissão, lugar natural das digestões e das eructações, votado à satisfação de gulas pecaminosas e venais. Segue-se-lhe o ventre, encarado como um saco de tripas por onde transitam matérias fétidas e exalações pestíferas. Finalmente, fazendo a apoteose do rebaixamento, surgia o baixo-ventre, lugar de inserção dos órgãos sexuais, veículos privilegiados do apetite carnal e da luxúria, ou seja, do pecado e do mal. Quer isto dizer que a imagem do homem se espiritualiza progressivamente em sentido ascendente e progressivamente se materializa em sentido descendente. E é no quadro desta simbolização antropomórfica que a hilariedade provocada pelo manguito do Zé Povinho deve ser compreendida. Não se trata apenas de enfatizar o anátema lançado por certa teologia católica sobre o riso, presente em autoridades tão distintas e tão separadas cronologicamente como S. João Crisóstomo, Basílio de Cesareia, S. Jerónimo ou Bossuet, ao abrigo do pressuposto de que Cristo nunca rira. A indagação baudelairiana do riso deixa-se complementar com a franca apologia materialista de Rabelais. É assim provável que todos nós, espectadores do manguito, gente tão séria e tão instruída que até frequenta congressos internacionais, deixemos cair um sorriso indulgente sobre o gesto fálico que nos nega o fiado, retirando-nos a confiança. É mais provável, contudo, que as gargalhadas mais sonoras partam dos cínicos de agora, daqueles cínicos que, à maneira de Rabelais, vivem em alegria as efusões da matéria e não se consideram vexados com isso e por isso. Mas é longa a experiência da espiritualidade crente no trânsito da vida dos Zés Povinhos lusitanos de agora e sempre. E, por muito cínicos que possam ser os exemplares tresmalhados deste estereótipo, até esses se deixaram fundir no molde judeo-cristão da civilização a que pertencem. O manguito é, portanto, a invectiva, a imprecação, a maldição lançada sobre o que incorre na suspeita de querer enganar. E essa fulminação traduz o sentido bem próximo de um “vai para o inferno”, de um “vai para as regiões da inferioridade”, de um “vai para o diabo”. As veredas da perdição para que nos adverte o catecismo católico baseiam-se na trilogia amaldiçoada do “mundo, diabo e carne”. Pois bem: o manguito não é mais do que a carne diabólica no mundo da perdição, mundo sensível, material, tentador. Isto permite-nos retirar uma conclusão paradoxal. O manguito do Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro é certamente um gesto obsceno e auto-defensivo. Mas ele não deixa de homologar e ratificar uma doutrina conservadora. Nele, quem triunfa não é Rabelais, é a Santa Madre Igreja. Se o manguito fosse um puro acto de exibição, como os de Gargântua, se o manguito fosse o arroto triunfal no fim de uma copiosa refeição pantagruélica, se ele não incluísse um juízo de condenação para com o outro, bem poderíamos sustentar que através dele se reivindicava a dignidade do estatuto material da vida. Não é assim. O manguito desqualifica o destinatário do gesto a partir da valorização do inteligível, do espiritual e da correlativa desvalorização do corpóreo. Assim sendo, ele declara subliminarmente, por palavras rudes, o que a filosofia espiritualista exprime explicitamente em discursos de requintada elaboração.
Vamos concluir. Quem se deslocar a Pompeia verificará que a direcção do lupanar da cidade está assinalada em lajes de pedra, no chão de veredas próximas, por falos nelas desenhados e criteriosamente orientados. É provável que as meretrizes de Pompeia exigissem o imediato pagamento dos seus serviços, sem margem para fiados. Mas a verdade é que não encontrámos por lá nenhum equivalente do manguito. É de supor, portanto, que tendo Pompeia exibido falos, escancaradamente, sem os condenar através de juízos larvares, adstritos a imprecações dirigidas a terceiros, é de supor, dizíamos, que esse vicioso lugar tenha sido alvo de uma sentença definitiva, proferida por alguma potência transcendente. É deveras provável que tenha sido por isso, portanto, que o Vesúvio a soterrou.
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