24 de novembro de 2009

A INSOLÊNCIA DO ZÉ POVINHO (2ª Parte)

Comunicação apresentada no Congresso Internacional "Rafael Bordalo Pinheiro no seu tempo" - Lisboa: Universidade Nova - 18.11.2009


Mas será que não poderemos sustentar o inverso destas interpretações? Será que o riso estrepitoso ou simplesmente discreto suscitado pelo manguito do Zé Povinho, longe de representar a reivindicação desalienante de certos hedonismos bordalianos não significará antes um juízo de superioridade formulado por quem vê em relação a quem cria? Expliquemo-nos. Baudelaire, nas suas páginas de estética, ao ajuizar sobre a obra dos grandes caricaturistas franceses e britânicos, propôs uma interpretação do riso a que o tempo deu a força do paradigma. O riso seria, em seu entender, o resultado da consciência da superioridade de quem ri e o anátema condenatório derramado sobre o objecto dessa hilariedade. Por isso, seria cruel, desapiedado e diabólico. Rimo-nos de quem escorrega e se estatela, do alto da nossa convicção de que jamais nós nos deixaríamos deslizar tão desastradamente e achatar no solo sujo. Rimo-nos dos que produzem inconveniências sociais ou mundanas porque estamos cientes de que o nosso respeito pelo bom-tom e pelos códigos protocolares de conduta nunca nos deixariam fazer tão tristes figuras. Rimo-nos duplamente do manguito do Zé e da heterodoxia iconográfica do seu criador por vermos corroborado, no gesto fálico, a imagem proverbial do patego mal-educado, do tosco labrego analfabeto, que nós não somos, e em Bordalo Pinheiro o ceramista popularucho, obsceno e primário que ficou muito aquém, por exemplo, da Arte consumada do seu irmão Columbano, por nós muito apreciada. Seria um riso ambíguo, sentado no varandim da auto-suficiência e, em derradeira análise, do desdém.

Pensamos, contudo, que uma das palavras mais decisivas poderá ser proferida nesta matéria por certa topologia ou topografia física simbólica que é indissociável dos juízos civilizacionais de valor. Chamamos em nosso socorro a célebre pintura de Rafael intitulada A Escola de Atenas. O centro da composição é ocupado pelas figuras de Platão e de Aristóteles. O primeiro, empunhando o Timeu, uma das suas obras mais importantes, ergue a sua mão para o alto, querendo significar a proeminência do mundo inteligível sobre as comezinhas realidades do empirismo sensível. Pelo contrário, a mão de Aristóteles estica-se e mantém-se paralela ao solo, opondo ao seu acompanhante a imediata referência do homem ao mundo da materialidade. Ora, a atribuição de um significado valorativo à imagem humana, seja ela qual for, é feita em concordância com arquétipos filosóficos, com quadros apriorísticos de interpretação que não apenas situam o homem, referindo-o a um alto e a um baixo, como o julgam em função da própria dominância das tradições civilizacionais. Na civilização judeo-cristã a espiritualidade reporta-se ao alto, ao céu da ideia pura e da Divindade monoteísta, do mesmo modo que a materialidade se encontra referida ao baixo, às regiões inferiores, onde imperam as forças obscuras e satânicas da dissolução e da anarquia. Platão ganhou a Aristóteles. A ordem do mundo repousaria numa significativa estratificação de realidades, nos termos da qual o bom Deus reina a partir de cima, impondo a tudo uma soberania evanescente, espiritualizada, e o mau Diabo se revolve nas maléficas regiões inferiores, regendo apenas os sujos instintos da sua materialidade. A imagem humana concentra nela própria o drama destes opostos. A postura erecta do homem permite-lhe dirigir o olhar para o alto das regiões celestiais, mas os seus pés encontram-se irremediavelmente soldados ao baixo das realidades terrenas. A ideia de que o corpo é o habitáculo degradado de uma alma imortal e potencialmente divina, já se surpreendia na terminologia dos pensadores pré-socráticos, que operavam a aproximação lógica e fonética entre as palavras soma (corpo) e sema (túmulo). O corpo era assim apresentado como o túmulo de uma alma agrilhoada, punida por ter pecado. Este veio interpretativo comunicou-se de Pitágoras a Sócrates e Platão, destes a Plotino e de Plotino, por via das exegeses árabes, à patrística medieval. Continua hoje a ser um lugar-comum da espiritualidade crente ocidental. E é ainda nos termos estritos desta espiritualidade que se realiza a percepção valorativa do corpo humano.

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