10 de novembro de 2009

ECCE HOMO


Vieram dizer-me que tinha nascido.

E eu vi-o todo enrolado num xaile branco e rendado

Imaginado (mais do que feito) pelas agulhas pacientes da Mãe

Que tricotava em serões lentos e conversados

À lareira da casa antiga, serrana, perdida entre penedias calvas.


Vieram dizer-me que tinha crescido.

E eu tornei a vê-lo todo envolvido em graças de mulheres novas

Imaginadas (mais do que tocadas) pela incandescência do instinto

Que se espalha pelo corpo todo, em embriaguez de viço e de promessa

Por lugares escusos e rendados do verde de muitos bosques

Passeados, em fins de tardes cálidas, pelos que amam transitoriamente.


Vieram dizer-me que envelhecera.

E eu vi-o todo enrolado num capote alentejano

A enxotar o frio da alma, o reumatismo do corpo

E as memórias ( como punhais de saudade) a encherem

Os lugares mais escusos, mais secretos da alma emurchecida.


Vieram dizer-me que morrera.

E eu voltei a vê-lo todo torcido num caixão castanho,

Decorado com borlas brancas sem graça e sem amor terreno

(“Quando eu morrer batam em latas; etc, etc) …


Irei certamente encontrá-lo qualquer dia, quando eu próprio

Riscar o céu, de Ocidente a Oriente, com a alegria pagã dos renascidos.

Vê-lo-ei então abraçado à Via Láctea, revigorado e firme, montado num raio

De luz e de paixão imortal, procurando a raiz da Mãe, a carícia da Amante

E até, talvez, o conforto dum Deus qualquer, “sempre negado e sonhado”.

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