6 de novembro de 2009

DE TRANCOSO A S. PEDRO (Final)

Uma parte das Termas de S. Pedro do Sul e do seu encantamento

Direi agora a verdade toda. O torrão que mais contribuiu para a secundarização da nostalgia com que abandonara Trancoso - o tal pequeno, abençoado paraíso, de gelos tempestivos e de pardais adormentados em campos de alva invernia – esse torrão dá pelo nome de Termas de S. Pedro do Sul. Imagine-se um medalhão pintado por mão paciente, sobre uma base oval de metalização preciosa. Peça-se ao artista que o rio seja mais lento, a ramada fluvial mais acolhedora, a memória histórica mais impressiva, o carreirinho de passagem mais mimoso, o fontenário ribeirinho mais ingénuo, o bafo do vapor sulfuroso mais cismático, o barquito de recreio mais álacre, a distribuição das orografias mais equilibrada, a floração mais silvestre, a simbiose da terra com a água mais justificada, o marulhar da corrente mais murmurante, peça-se tudo isto à estesia da divina e artística Natureza, e a obra, uma vez consumada, poderá ir às águas lustrais do baptismo tomando o nome de Termas de S. Pedro do Sul. Lá foram, lá vão muitos, como outrora o fez D. Afonso Henriques, como ontem aí chegou a Rainha D. Amélia, pedir à virtude das águas o lenitivo para as insuficiências das fisiologias. Contudo, as Termas de S. Pedro do Sul cumprem desígnios de alcance insondável. Querem saber como surgiram? Eu vos conto.

Muito antes da imagem padroeira ter chegado ao bom porto do seu amieiro salvador, muito antes disso, já o Demiurgo do Mundo criara a Terra e os outros três elementos da cosmogonia portentosa : a água, o fogo e o ar. Num momento de distracção, o Bom Deus cerzira o local das futuras Termas com linha grossa e pontos desconjuntados. Esse lugar era pavorosamente feio. A terra, cinzenta e podre, exalava pestilências de agonia. A água cachoava em linha recta, lambendo as margens nuas. O fogo vulcânico derramava vómitos de lava na paisagem torturada. O ar pesado expulsava todos os rouxinóis de todos os lenhos calcinados. Eram assim as Termas no prólogo das Idades. Mas o bom do S. Pedro, guardador do céu, sentiu-se grato à enseada que o tinha recolhido. Chegara moído de tanto trambolhão, repisado por tão inclementes encontrões das lajes avulsas por que navegara em desacerto. O íncola que o tinha recolhido, depois de o catar de limos hereges e de musgos idólatras, murmurara entre dentes: “Ainda bem, meu estremecido S. Pedro, ainda bem teres aportado aqui; continuasses tu a flutuar na correnteza e ainda irias arribar à Terra Feia. Pobre de ti ! Ou ficarias para sempre enterrado nesse lugar, dando pasto a vermes fedorentos, ou a força bruta das cachoeiras te partiria de encontro a algum penedo ateu, ou as fauces do vulcão te consumiriam sem compaixão, ou o ar letal te provocaria temerosas complicações respiratórias”.

S. Pedro, sem dar acordo de si, ouviu todo aquele rol de vaticínios infaustos. Deixou que o levassem, entre círios e orações, para a capela do lugar. Mas ficou pensativo. Era injusto que um tão piedoso povo, agora credor da sua ventura e dos seus cómodos, agora seu fervoroso adorador, - fervor tamanho, só o da filha do Faraó por Moisés; e mesmo esse, a crer no marralhar das comadres do Empíreo, não estaria completamente expurgado de planos a longo prazo para futuras concupiscências … - era injustíssimo que tão excelente povo vivesse paredes-meias com aquele deserto inóspito, com aquela Terra Feia de pesadelo. S. Pedro rezou então uma sentida prece ao Criador: “Senhor, se a recordação dos meus bons serviços e da minha submissão e fidelidade To consentem, se os préstimos do meu apostolado e do meu Evangelho Te são ainda agradáveis, se o meu serviço de Porteiro da Tua Divina Mansão merece a Tua indulgência, converte, Senhor meu, a Terra Feia no mais encantador rincão deste ridente Portugal”.

Ficou então provado, se fosse preciso prová-lo uma vez mais, que a fé remove montanhas. A Terra Feia revolveu-se em paroxismos de ventura, alisou-se em água do rio, espreguiçou-se uma última vez, e serenou para sempre, transfigurada, pura, talvez encantada por “ver tão lindo caminho”. O fogo do vulcão recolheu-se ao seu útero de profundeza venal e dele apenas sobrou a nota de um fuminho discreto, domesticado, quase translúcido. E o ar ganhou leveza etérea, expulsando miasmas, repelindo exalações de inferno, destilando dulcíssimos odores, levitando em respirações balsâmicas. Estavam criadas, por graça de Deus e intercessão do Guardador de Infinitos, as Termas de S. Pedra do Sul.

Trancoso foi a imagem alvíssima da meninice feliz. Mas, meu Pai da terra, minha raiz saudosa, foi em S. Pedro do Sul que cresci em alegria encantatória. Por isso, tinhas razão quando disseste: “Vamos para S. Pedro do Sul !”.

Tu bem sabias do que S. Pedro poderia ser capaz …

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