13 de maio de 2012

TAPADA DE MAFRA

Era a Mãe que lhe dizia : - “Olha para cima, filho, olha para cima!”. Aquilo que ficava “em cima” não era (ou não era só …) o estatuto do Senhor Doutor, título invejado numa família de pequenos burgueses funcionários públicos. O que estava em causa era uma panóplia de Valores e de Sublimidades, que se reportava, talvez por crença católica profunda, às regiões celestiais. Igual comportamento – ou quase igual – era o do Capitão Mendes, que ele encontrou na tropa. Esse também afirmava, com voz de trovão e face apopléctica: “Suas merdas, seus meninos copos-de-leite, seus sacos de ventos malcheirosos, então vocês não sabem, suas bestas, que o que conta é o “recheio”? Este “recheio” era a Vontade, o repositório de forças anímicas que os haveriam de obrigar a refocilar na trampa e a agradecer de seguida aos céus a ventura do manejo de arma e dos crosses infindáveis, feitos na Tapada de Mafra, ao som histérico da voz do furriel e ao calor do exemplo implacável do “meu Tenente”. Mas o Capitão Mendes soprava mais directivas : “ Olhem lá, suas donzelas de tricot, vocês julgam que o coirão serve para alguma coisa senão para rebentar de sofrimento? Vocês já se capacitaram que estão aqui estão na guerra, seus guerrilheiros de chocolate? E quando vos zunirem as balas nas orelhas, suas Amélias apaneleiradas, que é que vão dizer ao inimigo? Oh, inimigo, ferra-me um tiro no toutiço, que eu estou muito cansado e já não posso correr mais? É isto que querem? Seus frangos de aviário, é mesmo isto que desejam? “. Na altura, ninguém se atrevia a duvidar que a superioridade do “recheio” – fosse lá isso o que fosse – era um “quid” incontestável, tão incontestável que foi mesmo em seu nome que a fragilidade tímida do Martins acabou por fazer fractura exposta numa das pernas, só porque, cheio de vertigens, se desequilibrou do “pórtico” e malhou com o costado no duro chão do adestramento. Foi por isso que ele se julgou predestinado, quase prestes a ir para padre depois da tropa, só porque a Mãe, o furriel, o “meu Tenente” e o Capitão Mendes lhe haviam interiorizado a crença da superioridade do “recheio” sobre as materialistas e quebradiças concessões que a matéria corpórea faz a si mesma. A crise de consciência veio depois. E esse depois coincidiu com a observação dos estrumes que se colocavam nos campos, para que as plantas se pudessem nutrir e trepar, gloriosas, acima das ervas mais rasteiras. E mais: reforçou-se quando ele descobriu, maravilhado e irremediavelmente sem jeito, que não precisava de grande “recheio” para fazer vibrar o corpo masculino, ao contacto do seio rijo das moças, e que um filho se fazia sem qualquer necessidade da mística idealista. Claro que acabou por não ir para padre.

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