A personalidade narcísica adora-se, afaga-se, superlativiza-se, mas não se suporta nos confrontos decisivos que resultam do embate com a existência e com a verdade do viver. Não é certo que o narciso tenha quebrado todos os laços com a sociedade, abismando-se apenas na contemplação de si mesmo. O narciso sofre quando não se sente o centro de todas as atenções. Isto significa que depende muito mais dos outros do que o comum dos mortais. A sua maldição é a indiferença que a sua presença possa provocar. E é por aqui que chegamos ao paradoxo do narcisismo: para poder adorar-se carece de poder seduzir. E a sedução, como é sabido, é a cativação do Outro (lembremos O Principezinho, de Saint-Exupéry). Para cativar o próximo, o narciso necessita de sair de si, ou seja, de se alienar. A contradição do narcisismo é a de ter de viver num mundo regido por regras que olvidam ou minimizam a existência de narcisos.
É por isso que é tremendo e temível o perigo de podermos ser governados por personalidades narcísicas. Como a fruição estética irá sempre predominar sobre a imposição ética, o narciso cometerá as mais indescritíveis atrocidades para materializar a exigência do “reparem em mim!”. E quanto menos ele for capaz de atrair a atenção do auditório, maior será o impulso cego, a premência irrenunciável, o engodo insidioso de vir a conseguir pela crueldade o que não lhe é possível obter pela solidariedade. “Reparem em mim!” teria sido a fatuidade que impôs a Nero o incêndio de Roma, a Hitler a boçalidade da “solução final” e a Estaline a hecatombe de todos os Gulag e de todos os “planos quinquenais de extermínio”.
3 comentários:
Caro Amigo,
Excelente dedução que me leva a uma outra, por certo mais minguada de brilhantismo, que se resume numa só pergunta: — A entrega ao serviço público não será ela mesma um disfarce de um narciso que se não assume?
Esta questão é incómoda, eu sei, pois vai bulir com muitas consciências tranquilizadas pela ideia de que estão a servir os outros e não a darem palco e ribalta a si mesmos. Mas, por escrúpulo pessoal, para que a introspecção fosse mais profunda e para tranquilidade própria, tinha de fazê-la.
Um forte abraço
"REPAREM EM MIM!"
Revêem-se em sí próprios os narcisos
como num baço espelho de metal,
o qual do seu carácter pessoal
não mais lhes dá que traços imprecisos.
Completa o simulacro a presunção,
forjando cada qual sua figura
de acordo com a sua conjectura
em termos de assumida perfeição.
Pelo geral, não passa de miragem
a ideia que o narciso se atribui
pelo que diz respeito à sua imagem.
Para se impor ou se fazer valer,
tudo lhe serve, tudo constitui
razão para o abuso do poder!
João de Castro Nunes
CINZAS DO MAL
A muito custo, após tanto sofrer,
livrámo-nos da Santa Inquisição
e mais recentemente, a bem dizer,
dos vários campos de concentração.
Tirando algumas poucas excepções,
livrou-se o ser humano da tortura
e das maciças exterminações
de povos por motivos de cultura.
Presentemente reina a liberdade
por quase todo o mundo por virtude
de uma geral mudança de atitude,
O que intimida ainda a humanidade
são nos confusos tempos actuais
as pequeninas "soluções finais"!
João de Castro Nunes
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