A monarquia constitucional portuguesa sofreu em cheio os efeitos do Ultimatum em momento particularmente delicado. D. Luís, cujo reinado fora um modelo de constitucionalidade cartista, havia falecido na cidadela de Cascais em 19 de Outubro de 1889. Sucedera-lhe o seu filho D. Carlos, que logo viu ensombrado o seu recente casamento com Dona Amélia de Orleans por esta verdadeira tempestade diplomática, logo transformada em vaga de fundo de agitação social, de temerosas dimensões. Os monárquicos não contaram que o grito de alma saído dos recessos do sentimento patriótico dos portugueses sofresse, no interlúdio das palavras iradas e dos gestos enfáticos, uma significativa mutação de alvo. Inicialmente, o ataque foi colectivamente desferido sobre a Grã-Bretanha, apresentada como devassa, execrável, cúpida e capaz de todas as indignidades e latrocínios. Nas primeiras horas, a explosão tinha sido apenas anglófoba e platonicamente nacionalista. Mas tudo isto irá transmudar-se num agudo brado anti-monárquico, prenhe de raiva e de exigência de vingança. E era este câmbio que a pena sagaz de António Enes registava, em artigos publicados nos dias 6 e 8 de Fevereiro no jornal O Dia. O governo regenerador, comandado por Serpa Pimentel, sob o pressentimento de um ataque às instituições, restringiu fortemente o exercício das liberdades de expressão e de manifestação. Estas medidas fortaleciam a convicção de que os poderes oficiais repudiavam o movimento nacional de protesto. Ora, segundo António Enes, era isto que estava “reunindo em volta da bandeira do ódio à Inglaterra paixões políticas, ressentimentos antigos e esperanças revolucionárias”. E acrescentava, sem dúvidas na voz: “Hoje, essa bandeira já não é só de guerra contra o estrangeiro insolente; principia a representar uma oposição enérgica às instituições vigentes, acusadas de terem desarmado a honra e os interesses do país perante os insultos e as espoliações da força”. Certeiras palavras! Tão certeiras que anos depois, o republicano João Chagas diria o mesmo em mais poupadas palavras: “Começou-se por gritar, abaixo a Inglaterra; acabou-se por gritar, viva a República”.
A verdade é que os dois partidos da “rotação” monárquica, o Regenerador e o Progressista, não lograram subtrair-se ao atoleiro da bátega colectiva. O Partido Progressista, alvo preferencial da vozearia primitiva, nunca teve condições para transformar o Ultimatum numa verdadeira questão internacional, merecedora de activas solidariedades externas. Julgou poder jogar contra o trono da Rainha Vitória a eventualidade de uma nova aliança, a forjar com o poder militarista da Alemanha de Bismarck, à sombra da discreta cumplicidade e da boa-vontade do governo francês. Mas as convenções luso-francesa e luso-alemã de 1886, que sonhavam com o tal “novo Brasil em África”, ressalvavam expressamente os direitos que outra qualquer potência julgasse ter aos territórios que nos eram reconhecidos. Por isso, bastaria que os britânicos se enfadassem e replicassem com entono para que Portugal ficasse completamente isolado. Sobrava o Partido Regenerador? Sobrava. Mas também este demonstraria, logo a seguir, através da negociação das tibiezas constantes das cláusulas do tratado ad referendum de 20 de Agosto, que não era do seu interior que poderiam ser sacados trunfos suficientes para moderar a Inglaterra. Ou seja: o Ultimatum constituiu um dobre de finados sobre a capacidade de ambos os partidos monárquicos, por igual impotentes para fazer singrar os miríficos projectos expansionistas de um Portugal sem frota de guerra, sem marinha mercante e sem solvência financeira internacional. Mas este considerável acontecimento assinalará também o início de um novo estilo de realeza. O princípio anglo-saxónico de acordo com o qual “ o Rei reina mas não governa” será rapidamente substituído pelo ditame cesarista que encoraja o Rei a reinar “realmente”, ou seja, convertendo-se numa espécie de chefe de governo. Era esta, de resto, a directriz proposta pelo famoso grupo gastronómico-político dos Vencidos da Vida, do qual o próprio D. Carlos se considerava “Vencido suplente”. O “vencidismo” de Carlos Lobo de Ávila, Oliveira Martins e António Cândido, dos palacianos Ficalho e Arnoso e do próprio Ramalho Ortigão pronunciava-se pelo alargamento régio da competência executiva e pelo intervencionismo do Poder Moderador em todos os domínios da mais alta Administração Pública. O abalo do Ultimatum reforçou esta proposta, indo originar este paradoxal resultado: um monarca recém-chegado ao Poder, isento das máculas do Ultimatum, irá macular-se sem remédio, devido, em grande medida, a esse mesmo Ultimatum.
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