6 de julho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXIX

Basílio Teles, um dos mais lúcidos historiadores da crise do Ultimatum inglês

XXIX - O ULTIMATUM E O PARTIDO REPUBLICANO

Para que possamos compreender a passividade do Partido Republicano durante os agitados dias que se sucederam ao Ultimatum inglês é necessário evocar a sua peculiar interpretação da história, correlacionando-a com o perfil dos seus chefes. As principais figuras de proa do republicanismo lisbonense, tais como Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, Jacinto Nunes ou Sebastião de Magalhães Lima, perfilhavam um positivismo larvar ou ostensivo. E esta doutrina, longe de conceder preferência a métodos de acção revolucionária, optava por alternativas pacíficas e pedagógicas, dando como adquirido que o tempo se encarregaria de fazer triunfar a causa popular, quando o fruto da Civilização estivesse bem maduro. Era necessário saber esperar o momento da colheita daquela sementeira de ideias que vinha sendo feita há cerca de uma dezena e meia de anos.

Por outro lado, tendo o contencioso colonial anglo-português decorrido num relativo sigilo, longe das curiosidades dos jornais daquele tempo, o Partido Republicano foi apanhado completamente desprevenido pelo inesperado veredicto dos factos.

Talvez tivesse sido relativamente fácil ao republicanismo apropriar-se da indignação popular e orientá-la no sentido mais conveniente para os seus objectivos. Mas – há que dizê-lo – o Partido Republicano vivia, desde o seu terceiro Congresso de 1887, uma situação interna muito convulsa e com facções em aberto conflito. José Elias Garcia e Zófimo Consiglieri Pedroso, representantes do Partido na Câmara Baixa, eram acusados pela sensibilidade mais radical, comandada por Manuel de Arriaga, de estarem em vias de concluir uma aliança com uma patrulha monárquica minoritária, a Esquerda Dinástica, dirigida por Barjona de Freitas. Isto explica que apesar da desorientação das forças monárquicas e da notória inquietação do Paço, não tenha havido figuras republicanas representativas a dar um rumo seguro e firme ao protesto popular. Quem apareceu a procurar dirigir o torvelinho da arruaça foi Eduardo de Abreu que era, por então, deputado do Partido Progressista e que mais tarde viria a filiar-se no Partido Republicano.

O republicanismo limitou-se a imitar a inconsequência das ruas, preferindo o efeito teatral, a declamação palavrosa e o pequeno romantismo de saguão ao golpe certeiro dirigido ao coração do regime. Por isso foram tão inofensivas as catilinárias de certos jornalistas, em catalepsia duvidosamente patriótica. Os Debates, por exemplo escreviam: “Portugueses! Abaixo a monarquia! Abaixo os quadrilheiros! Abaixo a infâmia!”. O homem da rua repetia tudo isto e recolhia a penates, no fim do dia, em feliz e inocente estado de graça. Fizeram-se romagens cívicas de desagravo, integrando algumas delas individualidades maçónicas e figuras republicanas destacadas. Uma dessas procissões laicas rumou à Praça de Camões, depondo aos pés da estátua do autor d’Os Lusíadas uns panos negros, bem funerários, com esta legenda, pretensamente solene: “Estes crepes que envolvem a alma da Pátria são entregues ao respeito e à guarda do povo, da mocidade, da academia, do exército e da armada nacional. Quem os arrancar ou mandar arrancar é o último dos covardes vendidos à Inglaterra”. O Martinho, ao Rossio, café que dava guarida a tertúlias jacobinas e a simples capelanias de má-língua, acabou por exibir nas suas paredes as efígies de muitas das figuras governamentais que o Ultimatum soterrara, apontando-as como traidoras sem perdão.

Basílio Teles, uma das personalidades mais brilhantes e independentes da panóplia do republicanismo coevo, historiou minuciosamente toda esta colectiva impotência numa obra notável, intitulada Do Ultimatum ao 31 de Janeiro. Os eventos a que Lisboa pôde assistir no dia 11 de Fevereiro, quando tinha decorrido um mês apenas sobre a data do Ultimatum, dão-nos bem a noção da debilidade do comando republicano. Convocara-se uma reunião cívica para o Coliseu, mas o Governador Civil mandou encerrar a sala na hora do comício e fez guardar as respectivas portas por umas dezenas de guardas municipais. A multidão retrocedeu, obediente. No Rossio, Jacinto Nunes e Manuel de Arriaga procuraram reorganizar os restos desse refluxo amedrontado, perorando em plena rua, sem outro êxito palpável que não fosse o das correrias plebeias à frente dos chanfalhos dos representantes da Ordem. Os improvisados oradores, ainda que muito vitoriados pelos fugitivos, foram presos e conduzidos a bordo de uma embarcação ancorada no Tejo. Esperava-se que à noite fosse feito o ajuste de contas. Mas bastou que, depois do sol-posto, soassem umas tantas apitadelas policiais aos ouvidos de seis ou sete mil pessoas acantonadas no Chiado, Loreto e S. Roque para que todos cumprissem o entremez ordinário da fuga e da consequente mudança da roupa mais interior no agasalho da segurança doméstica. O deplorável episódio ficou conhecido, nos fastos lisboetas, como a “campanha dos apitos”. Fialho de Almeida, o Irkan dos Pontos nos ii, esbravejava neste periódico de Rafael Bordalo Pinheiro: “Não, isto não é povo, é lama plástica. Isto não é amor da pátria, é balela ridícula”. Converter o povoléu em Povo era, é, sempre será uma tarefa hercúlea. Mas é essa a tarefa a desempenhar, em todos os tempos, pelos mentores da Cidadania decidida e convicta.

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