Será que o “bom selvagem” de Rousseau só era bom por ser selvagem? Será que a Civilização, com as suas promessas de melhor e mais fácil vida para todos, com o incitamento a que ganhemos mais e mais dinheiro, a que sejamos “notáveis”, a que tenhamos importância social, a que deslumbremos os nossos competidores directos, será que esta Civilização nos foi roubando toda a inocência, toda a indulgência, todo o sentido de alteridade, e nos colocou na alma seca o riso sardónico de Mefistófeles? Este Mefistófeles percorreu toda a alta literatura, do século XVI em diante. Ocuparam-se dele espíritos tão cintilantes como os de Marlowe, Shakespeare, Goethe, Thomas Mann e Paul Valéry. Mefistófeles não se limita a ser uma grotesca e primária personificação do Mal. Há nele outra subtileza, outra argúcia, outra vivacidade no modo como nos sonda os sótãos da respeitabilidade. É uma espécie de diabrete bem vestido e culto, que eu gosto de imaginar de monóculo e fraque. Pisa as alcatifas dos teatros da moda, possui as amantes mais capitosas que a grande vida mundana pode oferecer, frequenta os meios mais requintados, bebe champanhe em lupanares de luxo e parece estar fora do tempo porque ostenta um ar de permanente juventude. O meu Mefistófeles, aquele que eu construí com a minha imaginação e aprendi a temer em todos os momentos dos ajustes de contas comigo mesmo, é esta mistura exótica de aparato e de finura. Mas é também um pulha. Talvez o maior dos que pude conceber. Porquê? Porque nos arranca a composta máscara da decência. Todos nós – uns mais do que outros, certamente – possuímos mecanismos de auto-justificação que nos santificam, que nos salvam aos olhos de nós próprios. Conheço gente que é capaz de perpetrar as maiores infâmias sob uma girândola de pretextos, todos eles amarrados à absolvição do moralismo fácil. Assim, todos nos tornamos íntegros, estimáveis, exemplares, sob a caução desta espantosa fraude, que pode escapar a todas as criaturas … menos a Mefistófeles. É indubitável que se o meu Mefistófeles se debruçasse sobre o arcaico e ingénuo comportamento do “bom selvagem” de Rousseau, é seguro e certo que ele lhe haveria de descobrir, nos arcanos mais fundos da alma em bruto, o sedimento, o vestígio da perversidade mais discreta. Mefistófeles fascina-me porque conhece o mundo como ninguém. Não aquele mundo tal como teria sido gerado na primeira manhã da Humanidade. Antes este mundo, o que temos, o que habitamos, o que ajudamos a persistir, tal como foi sendo construído por trogloditas ferozes, primeiro; e depois por fradalhões gulosos, e ainda por Bórgias escondendo venenos em anéis assassinos , e depois por mercadores cúpidos, e agora por politiquelhos manhosos. O que confesso admirar em Mefistófeles é a lucidez gelada, a imperturbabilidade com que descompõe o retrato de Dorian Grey, tal como o esboçou Óscar Wilde. É pouco provável que este texto seja apreciado pelos que adoptam uma leitura optimista da natureza humana. Mas é bom que esses Amigos de Rousseau fiquem bem calados. É que, a não ser assim, teria de pedir ao meu bom Amigo Mefistófeles para lhes fazer uma visitinha de cortesia …
23 de maio de 2007
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1 comentário:
Meu Caro Amigo,
Tenho acompanhado de perto as suas postagens, mas falta o tempo para, com tranquilidade, lhes dedicar a atenção que me merecem, para as poder meditar com paz de espírito.
Não. O homem não nasce bom. O homem nasce nu. Nu de tudo, até do mal.
Nu de todas as manhas que rapidamente tem de aprender. E aprende-as no regaço da própria mãe, porque se não chorar não mama.
Ao seu Mefistófeles eu dava-lhe um aspecto mais colectivo e não um ar tão circunspecto e de cidadão bem instalado; ele passeia-se nos salões, mas veste o fato-macaco para desafiar os trabalhadores e a farda de respeitável general ou a toga de juiz para se introduzir sub-repticiamente nos mais recônditos escaninhos da sociedade, porque, afinal, ele é e confunde-se com a própria sociedade.
Repare, meu querido Amigo, diz-se que o Homem é essencialmente um ser social e sociável, e é-o, sem dúvida, mas é também, um ente superiormente conflituoso. Para ele, sociedade e conflito andam de mãos dadas. A Lei e os Códigos – até os éticos de que falou anteriormente – impõem-se como uma forma de defesa contra a própria sociedade, porque dois homens juntos são suficientes para gerar o conflito.
Então, não é o selvagem que é bom! Ou melhor, é-o aos olhos do nosso entendimento de sociedade não selvagem, porque aos da sociedade selvagem, aos de um outro selvagem, capaz de juízos de valor, ele é mau. Deste modo, poderíamos, por absurdo, dizer que todo o feto humano é bom até que a sociedade, no acto do nascimento, o corrompe. Assim, falar do Homem enquanto ser individual é, na minha perspectiva, muito arriscado, pois falamos de uma abstracção; precisamos de falar da sociedade humana, do e dos seus conflitos, da sua Moral, da sua Ética, do seu Direito, do comportamento do conjunto, para determinarmos os comportamentos desviantes – que não são bons nem maus, são só e somente, desviantes em relação ao que a maioria, nem sempre formalmente consultada, compreende e aceita como não desviante.
Levando ao extremo o meu pensamento, então, Mefistófeles é o acompanhante do micro e do macro social e tem existência no Homem, a par dele e para além dele.
É uma visão, diferente, mas creio que complementar da do meu Amigo.
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