5 de novembro de 2007

SACRALIZAÇÃO DO PODER

Qualquer manual de sociologia política nos garante que toda a sociedade organizada colhe a sua identidade a partir da instauração de um foco de Poder. O grupo reconhece a sua coerência a partir da sua anuência a uma proposta de legitimação que promana de um instituidor, ou seja, de um legitimador originário. É este contrato social que unifica a colectividade e se opõe a todas as tendências dispersivas que dentro dela possam manifestar-se. O cimento agregador da homogeneidade grupal resultará, portanto, da submissão de cada um ao conjunto das normas obrigatórias para todos. Mas o instituidor, proponente do contrato social, quebra esta regra da igualdade no próprio momento em que a propõe. Atentemos no facto da legitimidade do instituidor não ser colhida a partir do exterior, isto é, a partir da sua subordinação a uma proposta exógena, diferenciada de si mesmo, vista como outra, mas ser estruturada a partir do seu reduto interior, da sua vontade endógena, sentida como intrinsecamente sua. O Poder do instituidor assenta, portanto, na diferença, mesmo quando a sua intenção primordial proclama o propósito de aniquilar todas as diferenças individuais. O titular do Poder é encarado, portanto, como diferente. Ele furta-se aos próprios princípios de legitimação de que foi proponente. Na realidade, todos se submeteram à sua vontade e se moldaram aos seus pressupostos. A percepção deste estatuto de diferenciação e de excepcionalidade provoca nos demais um conjunto de reacções típicas de pasmo e de assombro. Esse titular ilegítimo da fundamentação social legitimadora – dizemos ilegítimo, porque se limitou, originalmente, a um exercício de auto-legitimação – , longe de ser punido pela sua diferença ostensiva, é compensado pela outorga e investidura de uma condição de superioridade. O colectivo, o todo tribal doravante homogéneo, reconhece-se unificado por um potente acto de vontade que o transcendeu e que se situou fora dele e para além dele. O significado de tudo isto é transparente: o Poder ganhou dimensões sacrais e expressões de religiosidade. O respeito, a mesura, o reverencial temor que o sagrado implica, sendo reconhecidos como potentes instrumentos de submissão social, fornecerão aos usufrutuários do Poder uma legitimação a posteriori indisputada e indiscutível.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

Meu Amigo,
Sábias palavras as suas, porque ponderadas e dimanadas de uma lógica fundada no raciocínio filosófico mais puro, mais racional. Mas façamos um exercício diferente; peguemos no aparecimento do Poder e na sua legitimação com base na Economia.
Dizem os antropólogos e os economistas que foi a posse da terra quem estabeleceu as bases do Poder. De facto, nas comunidades recolectoras, segundo parece, as grandes decisões, as que afectavam a comunidade social, eram tomadas em conselhos de velhos; nas de pastores, algo de semelhante ainda aconteceu; mas quando alguém, pela força, se apropriou das pastagens, das terras de cultivo e as populações se sedentarizaram, foi o dono da terra quem passou a ditar as conveniências do grupo, entrando no processo que o meu Amigo tão bem explicou.
Foi preciso Proudhom vir denunciar a propriedade para se fazer o estudo do desmantelamento do Estado, ou seja, do Poder auto-legitimado. O anarquismo pacífico pode ser uma ideia utópica, mas ainda é a única que contesta a estrutura repressiva – porque a legitimidade do Poder justifica a coercividade social – e lhe propõe uma alternativa.
Aparentemente conclusivo, não o fui, nem quero ser. Quis deixar, ainda que como perspectiva não realizável, a ideia de que há saídas para o processo imperfeito das democracias ditas legítimas.