Reportando-se ao sistema constitucional vigente, os republicanos portugueses enfatizavam o abismo que separava as cláusulas da Carta Constitucional de 1826, adoptada pela monarquia em funções, daquelas que tinham sido consagradas pela Constituição de 1822, que tinham tido uma vida extremamente curta. Era notório, desde logo, que o cartismo consagrava um sistema eleitoral baseado na capacidade económica dos eleitores e não na dignidade espontânea que emanava da simples existência desse eleitorado. Que queremos dizer com isto? Queremos dizer que a Carta Constitucional só concedia direitos efectivos de voto aos cidadãos que satisfizessem determinados montantes de censo (ou seja, de imposto) ao Estado. As leis determinavam taxativamente que os cidadãos que pagassem cifras inferiores às que estavam previstas na lei não poderiam votar. Estes eram reduzidos, desta maneira, ao estatuto minoritário de cidadãos passivos, estando condenados, portanto, à simples contemplação da vida política activa, sem que nela pudessem intervir. As decisões fundamentais sobre a vida futura da Nação eram entregues ao pequeno grupo dos terratenentes, uma vez que o sistema tributário (ou censitário) incidia predominantemente sobre os titulares de bens imobiliários. Isto significava que o exercício da actividade política, no que esta tinha de mais nobre e decisivo, ficava confiado a uma pequena bolsa de proprietários fundiários, uma vez que as cargas de impostos sobre os direitos de propriedade imobiliária conferiam estatutos diferenciados de cidadania. Em fórmula sintética : aqueles que não fossem proprietários ficavam condenados à simples e passiva contemplação do jogo político, em relação ao qual se deveriam considerar condenados a uma espécie de silenciamento legal.
A Carta Constitucional de 1826 entregava o poder legislativo a duas Câmaras. Eram elas a Câmara dos Deputados, que era electiva, e a Câmara dos Pares, que era de nomeação régia. Isto significava que as propostas ou projectos de lei, emanados da Câmara electiva dos Deputados, poderiam ser aniquilados pela consideração de oportunidade ou de simples autodefesa régia, formulada pela Câmara dos Pares ou Câmara Alta. Esta última Câmara, de cooptação régia, poderia sempre paralisar e aniquilar a capacidade de iniciativa da outra Câmara, a qual, embora sujeita a sufrágio, lhe estava irremediavelmente subordinada. A vontade do Rei iria preponderar sempre sobre a vontade da Nação.
Para além disto, a Carta outorgada em 1826 por D. Pedro IV – que fora o primeiro Imperador do Brasil – determinava que o Poder Moderador (forma eufemística de designar a realeza tout court) poderia utilizar um direito de veto absoluto em relação às propostas ou projectos de lei emanados da Câmara dos Deputados. Era um segundo crivo selectivo que funcionava a jusante da própria concordância dos deputados. Expliquemos melhor: uma proposta ou projecto de lei, emanada da vontade dos representantes populares, ou seja, da vontade dos deputados, só teria esperanças de futura vigência se houvesse, por um lado, a concordância da Câmara dos Pares e, por outro, a condescendência do monarca. Esta dupla tutela que se exercia sobre os representantes da Nação dava bem a nota da subalternização da vontade do Colectivo sobre a vontade particularista do chefe da aristocracia e dos seus sequazes.
Estas clarificações sobre a história dos textos constitucionais portugueses tornam-se crucias para que possamos apreender a futura matriz vintista dos republicanos portugueses. A nossa República reivindica a sua herança a partir do património ideológico dos homens que constituíram o Sinédrio e que quiseram impor à Corte e à aristocracia, foragida no Brasil, uma arquitectura cívica na qual a vontade do representante eleito prepondera sobre o arbítrio particularista do ungido de Deus e do cooptado pelo Paço.
Ora, a Constituição de 1822 não previu uma Câmara dos Pares, retirou ao monarca o veto absoluto e entregou ao deputado eleito o centro de gravidade da vida política. Foi por todas estas razões que o nosso republicanismo reivindicou a sua origem vintista.
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