11 de dezembro de 2006

A PROPÓSITO DA MORTE DE UM DITADOR

Augusto Pinochet despediu-se deste mundo e não deixou saudades. Mais do que execrar o ditador, haverá que apontar o húmus e os nutrientes de que se alimentam os tiranos, onde quer que medrem, e quaisquer que possam ser as justificações que lhes servem de pretexto.
Há duas maneiras de encarar o nosso semelhante. Uma delas é a mais primitiva e boçal: o nosso semelhante é o nosso concorrente, o nosso inimigo, o terceiro que nos disputa o espaço vital, nos rouba os nutrientes e nos arrebata as oportunidades de auto-afirmação. Como é evidente, a ser esta a lógica, a espécie humana perde toda a consistência de harmonização social. O acto de viver desprende-se dos vínculos da convivência e do calor da simpatia que lhe confere humanidade. O mando deixa de ser um comando, um mando com, uma aceitação mútua de regras de orientação. Passa a ser, tão só, um exercício desvairado de domínio, através do qual o ditador perde todo o sentido da sua proporção e da sua relatividade. Será então tomado por uma espécie de fúria megalómana, semelhante à que assolou Pinochet quando saíram dos seus lábios estas deploráveis palavras: “No Chile, nem uma folha oscila sem o meu conhecimento”. Este desvario pode ocorrer em qualquer momento, neste ou naquele país, como subproduto de quaisquer regimes, por brilhantes que sejam as camadas de verniz com que se adorna a chamada Civilização. Mas há um outro modo de interpretar o acto social de existência. Consiste este em interiorizar a verdade da nossa condição. Somos fracos, fugazes e sujeitos a todas as usuras. A usura do Tempo, sendo a mais implacável, porque contínua e imparável, não é a única com que nos medimos. Usurárias são também as doenças, usurárias são as dores e os castigos com que a Natureza inopinadamente nos pune. Inermes perante todos os Deuses, impotentes perante o próprio fio da vida, é sobre a ara da mútua relatividade que deveremos construir o edifício da vida colectiva. É sempre o outro, o terceiro, o semelhante, que complementa e realiza tudo aquilo em que somos insuficientes. Por isso, o outro é a parte necessária da nossa individual realização. Pinochet vivia, como adiado cadáver, ao arrepio de tudo isto. E no entanto também ele apresentava estigmas tão notórios de precaridade como os das folhas amarelecidas que se desprendiam das árvores sem lhe pedirem autorização. O ditador desconheceu ou nunca quis saber que qualquer acto de sobrevivência só subsiste através da mutualidade dos serviços e da conjunção dos afectos. Pinochet, que julgou poder sentenciar em vida, como um Deus, sobre a sorte dos chilenos, morreu pior do que qualquer outro seu concidadão, pois se finou como um patético homenzinho, criminalizado por assassinatos e latrocínios. E as árvores chilenas continuarão a oscilar, como sempre, ao sopro de todas as aragens, sem sequer se darem conta de que houve um dia um fétido Pinochet que as quis sujeitar.

4 comentários:

Luís Alves de Fraga disse...

Como deve imaginar, pelo comentário anterior, também ando, há mais de um ano, por esta coisa da blogosfera (será assim que se escreve?). Incontidamente posicionei-me em dois blogs: o «Fio de Prumo» (no Sapo) e o «Desblogueando» (aqui, no Bloger).
Vem isto a propósito, porque hoje, segunda-feira, é um dos piores dias de aulas que tenho na semana - logo quase de seguida, seis horas de trabalho! Ora, em um dos raros momentos disponíveis para mim, pensei: - tenho de escrever, no «Desblogueando», alguma coisa sobre o antigo ditador do Chile.
Cheguei a casa há pouco; deitei um olho à correspondência electrónica e, sob o efeito da irrequietude da novidade, vim espreitar o seu blog. Belíssima surpresa esta de o ver tratar com saber a morte de um tirano, mas, muito mais do que isso, dissertar suavemente sobre a natureza humana.
É bom. Depois de um dia de muito falar para quem julgamos que nos entende, é bom ter um Amigo que nos ilumina quanto ao que somos e como somos, mesmo quando não temos tendências ditatoriais.
Aqui ficarei atento aos seus escritos, esperando-os como os velhos esperam o sol no banco do jardim.
Um abraço

Anónimo disse...

Sim, Pinochet foi tudo o que tem sido e dito e muito mais. E provavelmente só a morte o livrou da condição de arguido. Tudo isto é verdade.
Mas... porque surgiu Pinochet ? E porque foi o seu Regime tão sanguinário e, sobretudo, tão duradouro, se comparado com outras ditaduras militares ibero-americanas? (Talvez só os Generais-Presidentes do Brasil - 1964-1985 -o ultrapassem, sendo que o último deles - João Baptista Figueiredo, 1979-1985 - exerceu já um mandato de pré-mudança, tolerando a campanha das «Directas, já !» - 1984 -, permitindo o acto eleitoral parlamentar de que derivou a eleição de Tancredo Neves - 1985 - e transmitindo o poder ao Vice-Presidente eleito José Sarney quando a doença - e ulterior morte - de Tancredo lhe impediram a posse).
Mais: Carlos Altamirano ou Pedro Vuskovic, por exemplo, foram modelos de democratas ? E que dizer do MIR («Movimeiento de la Izquierda Revolucionária») ?

E talvez não seja mau lembrar agora algumas instituições ou individualidades não referidas - ou só o sendo «en passant» - quando se fala de toda esta trágica História:

- O Presidente cessante em 1970, o democrata-cristão Eduardo Frei Montalva (?-1982, mandato presidencial 1964-1970), que resistiu a todas as pressões para, por expedientes para-constitucionais, impedir a posse de Allende; 3 anos depois apoiou, por algum tempo, Pinochet; mas cedo passou à oposição; a sua morte num hospital de Santiago em 1982, na sequência de uma trivialíssima intervenção cirúrgica, continua a levantar suspeitas; seu filho Eduardo Frei Ruiz Tagle (n. 1942) foi o segundo Presidente do Chile post-Pinochet (1994-2000).

- Os Parlamentares chilenos, a quem em 1970 coube, na ausência constitucional de «2.º volta» em caso de inexistência de maioria absoluta nas urnas, eleger o Presidente entre os 2 candidatos mais votados (Salvador Allende e o conservador Jorge Alessandri - Partido Nacional -, que fora já Presidente de 1958 a 1964). A relação de forças na Câmara teria permitido a eleição de Alessandri. Mas os democratas-cristãos e os «nacionais» não optaram por uma solução com o seu quê de «golpe parlamentar» (e, consequentemente, para lamentar).

- Os generais René Schneider e Carlos Prats, que recusaram liminarmente intervencões «manu militari» e pagaram tal acto com a vida: o 1.º num atentado atribuído à extrema-direita, em Santiago, em meados de Out.70, dias antes da investidura de Allende (4.Nov.); no funeral estiveram lado a lado Eduardo Frei e Salvador Allende, este último a 12 dias de tomar posse; o segundo já no Regime de Pinochet (que o temia), vítima que foi de um atentado à bomba em Buenos Aires, onde se exilara.

Qua direi, para fechar ?

- «Venceremos, venceremos, com as armas que temos na mão», cantava Victor Jara em 1970 e cantou entre nós José Jorge Letria em 1974-1975.

- Contraponho: «Voto, uma Arma do Povo !» - slogan do PS na campanha eleitoral para a Constituinte (1975).

Com um grande abraço de parabéns pelo novo «blog» ao meu Primo Amadeu José de Carvalho Homem, reiterando também os melhores Votos para o Natal e o Novo Ano

Armando Luís de Carvalho Homem.

Rui Lopes disse...

Só é pena que este ditador tenha morrido sem pagar por aquilo que fez, pois devia ter assumido as responsabilidades e ter comparecido em tribunal.

Anónimo disse...

Pois!....
E que dizer dos ditadores disfarçados de democratas que pululam à nossa volta?