28 de dezembro de 2006

BAKHTINE E A CULTURA POPULAR

Numa das mais espantosas abordagens feitas sobre a Cultura popular das Idades Média e Moderna, que tivemos a sorte de ler em francês, o russo Mikhaïl Bakhtine, autor de A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e sob a Renascença, extrai da expressão grotesca da vida uma penetrante visão do simbolismo social. É bom que se saiba que a designação de um certo tipo de arte como arte grotesca remonta aos fins do século XV. Foi então que as escavações feitas em Roma, nos subterrâneos das Termas de Tito, trouxeram à luz um certo tipo de grafismo inusitado e de representação surpreendente. Os especialistas estabeleceram que acabara de ser descoberto um estilo novo e que este, por ter sido revelado numa gruta ("grotta", em italiano), merecia a menção de estilo grotesco. As imagens subterrâneas das Termas de Tito chamaram a atenção pela sua criatividade e pela sua fantasia. Elas aboliam as fronteiras convencionais entre os reinos mineral, vegetal e animal. De uma pedra podia nascer um tronco humano, cujos membros se convertiam em ramarias de árvores, cobertas de folhas e de frutos. Seres mitológicos irrompiam ao lado de representações radicalmente naturalistas. E da profusão dos mais diversificados motes temáticos, do cruzamento sugestivo de contributos visuais heteróclitos, nascia uma arte dotada de individualidade própria. Se bem interpretamos a clássica obra de Bakhtine, foi através desta que se verificou o mais fundamentado e inteligente juízo acerca da chamada “cultura popular” medieval e renascentista, através da reivindicação da sua dignidade própria, deduzida a partir do seu significado peculiar. A “cultura popular” distingue-se da “cultura elitista”, segundo Bakhtine, justamente pela circunstância de possuir a audácia de derrubar as fronteiras sociais convencionadas pelos detentores dos Poderes hegemónicos. Neste sentido, ela reproduzia, à escala do social, aquilo que o estilo grotesco estabelecia na representação estética: uma revolução instauradora da unidade da Natureza (de uma Natureza “natural” e “social”). Pelo contrário, a “cultura académica”, a “cultura das elites”, era levada a compartimentar-se, a julgar-se outra, a imaginar-se “ilustrada”, a perfilar-se nos antípodas da vida comunitária. Acima de tudo, o que Bakhtine radicalmente desmistifica é a acusação de “vulgaridade” ou de “grosseria” que a estética social das elites imputa à estética social das camadas menos “ilustres”. Os jogos carnavalescos, os excessos alimentares, as paródias levadas a cabo nos períodos mais solenes do Natal e da Páscoa, dentro dos próprios templos, as festas como a do burro ou a dos tolos, a acentuação da dimensão do ventre, a furibunda interpelação ou o jogo de invectivas entre vizinhos, a denúncia da má justiça e da má religião, tudo isto surge, luminoso e refigurado, nas palavras espantosamente lúcidas de Bakhtine. Não sei se a obra já foi traduzida para o português. Caso não o tenha sido, é isto mais um triste sinal da menoridade dos editores portugueses.

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