10 de outubro de 2007

HOMENAGEM A J. S. DA SILVA DIAS

O que hoje sou, como académico e universitário, devo-o ao meu falecido Mestre. Foi ele o Professor Doutor José Sebastião da Silva Dias. Para além de ter criado, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o Instituto de História e Teoria das Ideias, o Professor Silva Dias reuniu em torno de si um grupo de jovens investigadores que cresceram sob a sua alçada e que – sem omitir por falsa modéstia o facto de me saber aí incluído – revolucionou, após a mutação do 25 de Abril de 1974, a metodologia e a substância do conhecimento histórico português. Esse núcleo de estudiosos congregava nomes tão relevantes quanto os de Luís Reis Torgal, Fernando Catroga, Zília Osório de Castro e José Esteves Pereira, entre outros. Por isso, a minha chegada e posterior integração numa plêiade tão notável produziu no meu ânimo uma impressão comparável à do néscio entre doutores.
Embora habitualmente afável e de trato correcto, o Professor Silva Dias cultivava um pouco a postura do pedagogo paternalista, credor do temor reverencial devido por neófitos às sumidades instaladas. Eu acabara de sair de uma carreira técnica: fora Conselheiro de Orientação Profissional do Serviço Nacional de Emprego, estrutura que apoiava o recrutamento de candidatos aos diversos cursos profissionalizantes então ministrados em específicos centros de formação. Era nula a minha experiência nos domínios da investigação histórica. Como então estivessem a ser publicados os primeiros números da “Revista de História das Ideias”, o Professor Silva Dias logo incumbiu os seus colaboradores do labor de produzirem para ela substanciosos artigos científicos. Quanto a mim, fiquei aterrado quando verifiquei … que não sabia o que era isso da investigação histórica. Dei-me ao ensaio, com reduzido êxito, de diversificadas técnicas de catalogação e de alinhamento bibliográfico. Mas daquela mole imensa de resumos, notas, comentários, adendas, remissões e auxiliares de memória, daquela estupenda e estupidificante Babel de erudição, não havia meio de sair um artigo digno de tal nome. Decidi encarar de frente a minha ignávia, a minha entranhada e insuperável inépcia, indo pedir ao meu Mestre e mentor o avisado conselho que me libertasse das angústias da impotência. O professor Silva Dias acolheu-me afavelmente no seu gabinete, disparando, depois de me saber bem sentado :- Então Carvalho Homem, o que é que o traz por cá? Engasguei então duas ou três frases desconexas, antes de ganhar coragem para confessar, despejadamente: - Acontece, senhor Doutor, que eu não sei investigar; vim aqui pedir ajuda. Numa palavra, como é que se investiga, senhor Doutor? O rosto do meu Mestre animou-se com os sinais de uma divertida surpresa. Ajeitou uma melhor posição na cadeira, antes de replicar: - Ora essa, Carvalho Homem; saber investigar é como aprender a nadar. A pessoa lança-se à água e esbraceja, esbraceja, até lhe apanhar o jeito. Quando tal acontece, essa pessoa fica a saber nadar. E calou-se, logo de seguida, fitando-me prazenteiramente por detrás dos seus óculos de tartaruga. Meio aturdido, mas disposto a não depor as minhas armas sem uma total clarificação, engatilhei então a pergunta óbvia: - E se a pessoa esbracejar, esbracejar, voltar a esbracejar, e mesmo assim não aprender a nadar? A réplica veio logo de seguida, com a inexorável frieza das coisas taxativas: - Se não aprender a nadar, não há novidade. Afoga-se. Tem a sorte que merece, não acha?
Confesso que nessa altura tal juízo me pareceu tão rude quão cruel. Foi necessário que eu tivesse aprendido a nadar para me aperceber da subtil sabedoria implícita, contida nas palavras do professor Silva Dias. Por isso lhe guardo o respeito a que a sua memória faz jus. Hoje, um desses pseudo-pedagogos de plástico talvez tivesse respondido ao meu aflito inquérito com as seguintes considerações: - Investigar? Mas para que diabo quer você investigar? Vá à Internet, meu amigo. Vá lá e compre uma investigação já feita. Um mestrado é barato! Um diploma de doutoramento custa um pouco mais. Mas vale a pena gastar dinheiro em obra asseada, não lhe parece? Investigar! Isto é que ele é parvo …
Como me orgulho de ter sido discípulo do saudosíssimo Doutor José Sebastião da Silva Dias! Que a terra lhe seja leve!

2 comentários:

Unknown disse...

Um abraço por esta homenagem ao nosso querido Mestre.Mas repare como anda a memória de tantos, que tanto lhe devem e...

José Henrique Dias

Luís Alves de Fraga disse...

Conheci de vista o Professor Silva Dias e troquei com ele meras frases de circunstância, nos anos finais da década de 80 do século passado, na Biblioteca Nacional.
Embora de estatura mais baixa e ligeiramente mais curvado, porque inclinado para a frente, havia no rosto dele grandes semelhanças com o do meu Pai (que tinha partido para sempre anos antes): o nariz ligeiramente adunco e afilado, o formato do rosto onde sobressaía uma cabeça mais larga do que a mandíbula e o pentedo do cabelo, já ralo, para trás.
Conheci-lhe parte da obra. Guardei dele o que referi mais a simpatia e educação que de si irradiava.

Basta ser o meu Amigo o arauto das suas qualidades para serem dignas de toda a veneração.