8 de outubro de 2007

OLHARES

Existe no olhar qualquer coisa de perturbante. Recordo olhares que profundamente ecoaram em mim, como se houvesse (e havia …) toda uma mensagem a encher o espaço que ia dos meus olhos àqueles outros que me fitavam.
Era eu pouco mais do que um miúdo, quase às portas da adolescência. Os meus pais decidiram acolher lá em casa uma trintona gorda, amiga de uma irmã que tive um dia. A dita mulher padecia dos nervos ou encontrava-se, se bem me recordo, à beira de um profundo distúrbio psicológico. Arrastava as palavras, apresentava o esboço de um sorriso triste e olhava as coisas de longe, fazendo crescer o espaço que mediava entre os seus olhos e os alvos em que o seu olhar se espreguiçava. Ouvia Stravinsky de manhã à noite, num gira-discos portátil, de marca “Dual”, que conseguira obter dos meus pais. O Stravinsky que eu ouvia era muito similar, segundo me parecia, ao olhar da trintona anafada. O “Pássaro de fogo”, que soava na grafonola, apresentava-se-me como um mergulho no vago, uma vez que os meus ouvidos não sabiam entender aquela estranha música, feita de estridências e de murmúrios para iniciados. Acabei por amar aquela música e por venerar aquela mulher. Ou teria sido o contrário? Ou afinal dei comigo a venerar Stravinsky e a amar aquela fêmea de ventre búdico? Não sei. O que recordo é a ondulação de um olhar-brisa, lambendo as coisas sem as esmiuçar. Desde aquele tempo, o olhar das pessoas é uma obsessão privativa com que componho as mais bizarras hipóteses. Aprendi, por exemplo, que a melhor forma de aquilatar da verdade caracterial de alguém é olhar esse alguém bem no fundo das pupilas. Poucos aguentam tamanho esforço de trespasse e ultrapassagem da barreira da visão, sobretudo quando os observados se sentem prisioneiros de algum remorso ou de alguma servidão de consciência. Mas os que logram resistir a esse exercício de resistência são os que gosto de contar no meu caderno de indefectíveis. Tive a penosa mas também decisiva experiência de assistir aos últimos momentos da minha mãe. Fui encontrá-la em estado de choque – nunca pude saber que choque era aquele e que causas lhe estiveram associadas. O olhar dela, que conhecera tão solto, tão meigo, tão cheio de mil aromas, aquele doce olhar encontrei-o eu vazio como um templo saqueado. Foi então que senti que o meu “Pássaro de Fogo” tinha cantado pela última vez. Voara para algures, sem ter tido tempo de me dizer um derradeiro adeus. E ainda hoje, quando escuto Stravinsky, sou tomado do remorso de não ter colhido e guardado no meu cofre mais bonito o último olhar vivo e quente daquela que foi, desde sempre e para sempre, a mais importante Mulher da minha vida.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

Caro Amigo,
Achei imensamente curioso este seu post, porque me deu oportunidade de recordar que, ao iniciar uma qualquer conversa com alguém, o primeiro ponto onde fixo o olhar é, sem dúvida, nos olhos do interlocutor. E é aquele que guardo na lembrança, não pela cor ou formato, mas pelas sensações recolhidas.
Esqueço caras, feições, cabelos, roupas, mas jamais esqueço a sensação de um olhar.
Dizer que os olhos são o espelho da alma é repetir um lugar-comum, contudo, nem por isso deixa de ser profundamente verdadeiro.
Obrigado por nos ter recordado o que muitos de nós esquecemos com frequência.