O mundo era ainda muito novo quando a rapariga se apaixonou. Era filha de um velho oleiro e a mãe falecera na sua meninice. O pai ensinara-lhe tudo e até a havia instruído nos segredos da sua arte. Naquele tempo, o barro servia apenas para modelar objectos de uso corrente: bilhas de vários formatos e capacidades, escudelas bem redondas ou vasos de utilidades múltiplas. Os usos e costumes puniam com rigor a cópia ou tentativa de reprodução da figura humana. Acima de tudo, proscrevia-se a reprodução dos rostos. A fisionomia de cada um albergava uma sorte de “pneuma” ou de imaterial conteúdo constitutivo que se considerava degradável pela simples tentativa de cópia. Por isso, o velho oleiro dissera à filha que ela poderia fazer, na sua oficina, todas as coisas que lhe aprouvessem, desde que se submetesse ao compromisso de jamais modelar um rosto com as suas próprias mãos. No dia em que a rapariga soube que o seu apaixonado iria partir para longínquas paragens, o seu coração, angustiado, procurou desesperadamente um meio de mitigar a dor imensa que já nela se acumulava. Os primeiros meses de separação foram particularmente atrozes. A filha do oleiro procurava reter na memória as particularidades do rosto amado, desde a ondulação dos cabelos à amplidão da testa, desde o desenho do olhar à geografia do sorriso. O pânico apoderou-se dela quando, passados alguns anos, lhe foi dado verificar que a fisionomia da seu amado já não se recortava com nitidez nos registos da memória. O ondear do cabelo era como o balançar da maresia ou como a dança da seara? E que distância exacta separava a base do nariz do bordo superior dos lábios? Não estaria o sorriso a converter-se num esgar? Foi então que a tentação perverteu o seu compromisso de sujeição às ordens paternas. Tomou o barro nas suas mãos e com ele reproduziu, tão fielmente quanto se recordava, o rosto ausente do seu apaixonado. Assim nasceu a Imagem, filha de um Amor nostálgico, registo incompleto de uma Paixão insubmissa, transgressão de um tabu primitivo. Foi então que se provou para todo o sempre que essa sorte de “pneuma”, esse espiritual conteúdo, enquanto propriedade de quem parte, reverberava de si para o seu duplo, para tornar menos amargas as privações da ausência.
28 de setembro de 2007
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
A imagem feita do barro é a reprodução filtrada pela recordação ou pelos olhos de quem olha. Essa reflecte mais quem olha do que quem é olhado, porque o escultor também se coloca no esculpido.
Afinal, os outros são em nós, também, uma parte do que nós somos.
Até o simples fotógrafo não deixa à objectiva da máquina o trabalho de reproduzir friamente: a mão que dispara tem a comandá-la sentimentos que escolhem esta posição e rejeitam aquela.
O outro dilui-se em nós como nós nos diluímos na representação do outro.
É tão complexo o adágio popular - julgado simples - que noutros tempos se dizia: «Quem feio ama bonito lhe parece»!
É feio, porque quem olha não ama e quem ama não vê fealdade. Afinal, quem olha não são os olhos, mas o sentimento de amor ou desamor!
E amar é gostar de nós no outro e do que o outro tem de nós.
Enviar um comentário