17 de setembro de 2007

LOUCURA E MORTE DAS AVES: HIPÓCRATES E DEMÓCRITO



I

Hipócrates de Cós dormitava na surdina da tarde quando um servo o abanou levemente, dizendo : - Senhor, senhor, estão aí os representantes dos senadores da cidade de Abdera e dizem ser-lhes absolutamente necessária uma audiência.
-Uma audiência? Mas afinal que se passa ? resmungou Hipócrates, ainda ensonado.
- Eles não dizem, senhor, eles não querem dizer. Mas a expressão de todos é grave e por aí se pode calcular que deva tratar-se de coisa importante.
- Gente de Abdera, dizes tu? Abdera é sítio de ilustração e de pensamento. Conhecem por lá as minhas receitas e infusões e os meus processos curativos. Bem, diz-lhes que venham até aqui.
Hipócrates sacudiu de si o resto do torpor estival e procurou adoptar uma postura que quadrasse ao seu reconhecido prestígio de restaurador de corpos e de almas. Passados uns instantes, entraram na sala três homens, atilados e cortejadores, que o saudaram com muito respeito e também com uma ponta de temor. O mais velho – que era também, por sinal, o mais encorpado – adiantou-se dois passos e aguardou. Hipócrates saudou-os colectivamente com estas palavras:
- Ilustres visitantes, a minha casa é vossa, mas dizei-me ao que vindes.
E logo o mais idoso, reincidindo na reverência, retrucou:
- Sapiente Pai do saber curativo, a cidade de Abdera sauda-te por nosso intermédio e envia-te augúrios de longa e feliz vida. Estamos na tua presença por insistência dos mais grados Senadores da nossa terra. Todos nos sentimos aflitos, bom Pai. O nosso maior pensador enlouqueceu.
- Como?, disse Hipócrates, Demócrito está enfermo?
- Pior, muito pior. Demócrito perdeu-se de si próprio. Mas não estamos autorizados a adiantar mais nada. As nossas ordens são imperativas. Ide, trazei Hipócrates por qualquer preço e levai-o à presença de Demócrito. E que seja Hipócrates, liberto de opiniões profanas, a traçar-lhe o incerto amanhã.
Hipócrates cofiou as barbas, tartamudeou uma rezinga que ninguém entendeu e acabou por dizer: - Não irei pela recompensa. Nem sequer por Demócrito. Irei, isso sim, pela sabedoria que Demócrito recolheu e transformou, a partir do Génio antigo.

II

Quando Hipócrates se acercou do tugúrio de Demócrito, em Abdera, verificou estar o chão juncado de aves evisceradas. Eram aves de diversos portes e de penas e penugens variegadas. Mas em todas fora feito, na zona do papo, um golpe fundo, longitudinal e pouco misericordioso. Algumas das vísceras, completamente destacadas do corpo da ave, jaziam abandonadas, exalando algumas delas um cheiro activo, a concitar a náusea. Mais impressionante do que tudo era, porém, o gargalhar que se ouvia distintamente, a partir do interior da morada.
Hipócrates chamou, a meia voz, com uma infinita doçura, fruto de quem respeita a Dor e a Sabedoria: - Demócrito, sou eu, o velho Hipócrates. Quero ver-te e ouvir-te. Por que ris? E quem é o alvo da tua troça?
Quando Demócrito se mostrou à luz do claro dia, os seus olhos apresentaram-se cansados e cavos, repletos de noites por dormir. Da sua figura, escanzelada e suja, destacavam-se uns braços mais compridos do que se esperaria e tão esquálidos como o resto do corpo. As mãos ossudas de Demócrito agitavam-se descoordenadamente por cima da sua cabeça; numa delas, um pássaro debatia-se inutilmente, procurando a fuga salvadora. Mas o que verdadeiramente vogava por sobre a cabeça de Demócrito, de Hipócrates e do pássaro era um contínuo e manso gargalhar, que levemente lhe agitava o tronco, como se fosse uma brisa a separar vimes ou bambus. Era mais ou menos assim a melopeia de Demócrito: - Aves do Hades ou do Olimpo, Deuses servidores de Zeus, eflúvios da Terra, emanações astrais, supurações do ventre terreno, eh! eh! eh! , tudo isto se junta em simulacros, eh! eh! eh! eh!, tudo é simulacro e tu também, Hipócrates. Eh! eh! eh! isto acaba por ser tudo a mesma coisa, quer seja ave, boi, cavalo ou javali, eh! eh! eh! também tu, ilustríssimo Hipócrates, és (como eles) um corpo cheio de buracos e de canais, inumeráveis canais, todos a verterem fluidos uns para os outros, eh! eh! eh! e a ficares melancólico, triste como a noite, quando a bílis negra se acumula onde não quer. Eh! eh! eh!, como é divertida a ignorância dos que julgam saber …
Hipócrates obtemperou então : - Vem daí o teu riso?
E Demócrito, sempre a rir, respondeu: - Não, o meu riso vem dos Deuses, eh! eh! eh! ; se queres mesmo saber, o meu riso vem da Deusa que me comanda a mão e me obriga a escrever o tratado que já se continha nas vísceras das aves. Eh! eh! eh!, tu bem sabes, tão bem como eu, que os guerreiros só partem para a guerra quando o coração das aves se orienta para o centro do horizonte, eh! eh!, como é cómico saber que um combatente, para ser bom, combate melhor pela orientação do coração do que pela força da espada , eh! eh! eh! …
- Que tratado escreves tu ?
- Má pergunta! Melhor seria que me perguntasses pelo livro ditado pela Deusa, em cada intervalo das minhas eviscerações, eh! eh! Mas aí vai – escrevo um tratado, por Ela segredado, sobre a loucura dos homens. Belo tema, não achas, eh! eh! eh!...
- E que dizes tu (ou a Deusa por ti) nesse tratado, meu pensador?
- Eu só posso dizer o que me é confiado pelo bico agonizante das aves. A Deusa diz o resto. Os pássaros só me falam ao crepúsculo. Vê tu bem, eh! eh! eh!, ao crepúsculo… É quando a bílis negra se concentra toda nos orifícios das asas, obrigando-os a perder o norte e a rasar os campos das batalhas, eh! eh! eh! O destino dos animais joga-se em cada poro. Mas é pobre o meu saber. Também ele acaba eviscerado, entendes isto, eh! eh! eh! ?
- Estou a entender-te, Demócrito. Mas, diz-me, diz-me por Zeus, rei dos Deuses, que segredo te revelou a Deusa?
- Eh! eh! eh! Ela provou-me que os homens não devem ser levados a sério. Ela garantiu-me que os homens se julgavam sensatos quando praticam a maior das suas loucuras, ou seja, quando julgam acertado tudo submeter ao império dos seus desejos privados. Homens tolos, eh! eh! eh! ; homens cegos, eh! eh! eh!... Neles se espalha e concentra, nos tubos e lugares mais inconvenientes, a bílis negra. Eh! eh! eh! eh! Negra como a noite, como o Mal, como o Hades. E quanto mais espessa e letal, quanto mais depositada nas vísceras e poros da Vida, mais os homens se julgam perfeitos, sensatos, ajuizados. Não te faz isto rir, oh meu insigne julgador? Ri-te comigo, anda. Eh!eh! eh! eh!
E Demócrito ficou a rir-se até Hipócrates desaparecer.

III

Discurso de Hipócrates aos senadores de Abdera

Senhores: Demócrito, o vosso maior sábio, não está louco. O seu estado é de fúria ; mas a sua fúria é de uma inexcedível lucidez. Procurou as raízes da loucura dos homens pelas duas vias possíveis: pela Ciência, eviscerando aves, e pelo entusiasmo, conclamando a Divindade. A Ciência tentou servi-lo com o mapa dos lugares corpóreos onde se acumula e concentra a bílis negra. Mas só a Deusa lhe soube explicar a causa mais funda do movimento dos fluidos. Essa causa é muito semelhante a uma ave que mantemos prisioneira numa das mãos e se solta, triunfal, sem que precise de ser eviscerada. Ao soltar-se, a ave procura a orientação do sol e com ele ilumina o mais fundo dos ânimos humanos. A causa da loucura é agora conhecida por Demócrito. Mas peço humildemente a vossa compreensão. Eu não posso nem devo revelá-la. Nem aqui, nem noutro qualquer lugar mundano. Se o fizesse, é muito provável que eu e vós morrêssemos de riso…

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