19 de outubro de 2007

A ARTE DA HISTÓRIA

Falemos um pouco da Historiografia e do modo de a “construir”. O insuperável embaraço de leituras militantes, ideologicamente comprometidas, à direita ou à esquerda, reside numa grelha de interpretação que opera com categorias a priori, das quais irrompem coloridas apoteoses ou sombrias fulminações, consoante as conveniências do momento. Mas a ponderação shakespeariana de existirem muito mais coisas no céu e na terra do que as que se encontram a operar nos limites de uma epistemologia preconceituosa é aquela que nos permite discernir, no campo da gesta histórica, entre os historiadores submetidos ao princípio da realidade e os novelistas usufrutuários do princípio do prazer. Esta terminologia, colhida de empréstimo à psicanálise, não visa empurrar para o divã qualquer historiador em concreto.
A sociologia do conhecimento já provou, desde há muito, que nenhum autor é “neutral” a escrever. Quem escreve, parte para o acto da escrita com um conjunto de servidões inevitáveis, de base ideológica, as quais incorporam a magnitude de uma formação prévia e até o acervo de um léxico intransmissível. Assim, é saudável que o escritor aceite com humildade a sua condição de indagador precário e não se aliene ao mito das pretensas verdades absolutas. Para mal da História e dos historiadores, sobejam hoje os “teólogos de Clio”, atulhados de certezas balofas e de intocáveis conclusões. Volitam nos céus da arrogância e orgulham-se de serem os arautos de uma “Ciência” acabada, entendível apenas em círculos iniciáticos. A pretensão de “neutralidade” anda invariavelmente associada a esta liturgia axiomática. É recomendável que se fuja o mais que se puder desta casta de “historiadores-cientistas”. Em nossa opinião, é sempre preferível o “historiador-artista”, metodicamente duvidoso, praticante de um rigor que não desdenha a intuição e de um esforço de objectividade que não enjeita a quase inevitável superação futura das avaliações presentes. A Arte, para nós, é isto mesmo : uma organização peculiar de formas, sons, cores, palavras, sensações e vivências, através das quais se persegue a demanda prometeica que nos conduz mais perto do Fogo e nos agrilhoa, logo de seguida, à rocha agreste da punição. Tal castigo não é mais do que a comprovação do nosso indómito desejo de conhecer, ao qual se associa o reconhecimento da debilidade com que abraçamos o desafio da cognoscibilidade.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

Caro Amigo,
Aqui está uma extraordinária Lição que deveria ser apreendida nos pormenores das palavras por todos os estudantes de História e por mais aqueles que a querem fazer.

A História – essa bela teia de Penélope – que cada geração faz e desfaz para compreender melhor o Passado, não pode ficar estática nas mãos de uns quantos que se arvoram em senhores do tempo e, acima de tudo, da compreensão desse mesmo tempo.

Mal de quem continua, depois de dobrados os sessenta anos de idade, a admirar os progenitores da mesma forma que o fazia nos tenros e infantis tempos da meninice. É porque não cresceu ou nada aprendeu com a Vida. Os nossos sentimentos mudam-se – e, acima de tudo, a sua compreensão – ao longo da vivência pessoal. Assim, como se poderá admitir que não mude o entendimento do passado quando sobre ele rodam as gerações?

O historiador, tal como o meu Amigo deixa bem dito, não deve ter certezas, nem neutralidades; só dúvidas e comprometimentos.
Quase arriscava a dizer que, quanto mais comprometido está ou é o historiador, melhor compreendemos a «sua» História, pois podemos cotejá-la com comprometimentos antagónicos e extrair a síntese que será o nosso próprio comprometimento. Dessa forma de dialéctica nascerá o mais importante: a plena compreensão dos factos, que nunca será definitiva.

Como sempre, alonguei-me e nada de novo acrescentei à sua Lição. Peço-lhe desculpa.