Sustentam alguns que certa forma de riso maldoso, intencionalmente dirigido à humilhação do nosso semelhante, foi designado de “sardónico” por existir na Sardenha uma erva venenosa que, uma vez ingerida, provocava rapidamente a morte. Nestas circunstâncias, a face do defunto apresentar-se-ia arrepanhada, distorcida, contraída num “rictus” de aparente sorriso. A este riso ou sorriso mortal foi dado pelos homens o nome de riso “sardónico”. Isto permite a extrapolação do domínio dos factos para o das interpretações, caucionando o salto da Ciência para a Ética. É que quando nos rimos de alguém com intenção depressora, quando derramamos sobre o adversário o mesmo riso que Ulisses dirigiu a um dos pretendentes a Penélope, sua mulher, no momento em que regressou a Ítaca disfarçado em pedinte, numa palavra, quando vexamos o nosso irmão de espécie com a malignidade deste riso, estamos a vaticinar a morte antecipada desse adversário, agora convertido em inimigo. Voltemos à “Odisseia”. Ulisses, ao chegar, só foi reconhecido por Argus, o velho cão que deixara no seu palácio antes de peregrinar por sobre as salsas ondas. Homero não o declara, mas é de calcular que tenha afagado o animal com um sorriso não-ervado. Ao inimigo, pretendente do tálamo da sua esposa, ele endereçou um riso venenoso e letal. Como é sabido, ao desvelar-se, Ulisses matou com as suas próprias mãos todos os invasores da sua intimidade, todos os disputantes daquela que o reconhecia como esposo e que, como tal, o havia esperado em ânsias. O caso está em que a justificação do “mortal-sardónico” é apenas admissível – se o for… – nos casos extremos em que nos batemos por causas indeclináveis. Nem sempre Ulisses arriba a Ítaca. Mas são inúmeras as vezes em que soltamos da alma a erva daninha com que vamos matando moralmente os nossos irmãos, obrigando-os a ingerir a erva da Sardenha.
9 de novembro de 2011
A ERVA DA SARDENHA
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