13 de novembro de 2008

CASA COM RISCA AO MEIO

A casa era velha e de risca ao meio, o que significa que existia um longo e sombrio corredor e que os quartos se distribuíam por ambos os lados. Era a casa dos avós. Velha, aldeã, com um último vestígio de pequena nobreza rural e com o cheiro incomparável que se desprendia de todas as infâncias nela vividas. Os nossos pais levavam-nos até lá, a mim e aos demais primos, por alturas das férias do Natal e da Páscoa e no dia em que se celebrava a festa da Nossa Senhora da Esperança. Quando a avó-viúva faleceu, ficou por lá um tio, que naquele tempo não se sentia ultrajado por ser mencionado como professor primário. Fumava muito e percorria o corredor, para cá e para lá, em passadas medidas, cadenciadas, destinadas por decreto inflexível a fazer ranger as mesmas tábuas, nos mesmos lugares, em todas as idas e vindas. Era benquisto das gentes da aldeia porque escrevia as cartas dos analfabetos, os requerimentos dos injustiçados da Administração e acertava as contas de cada um com o merceeiro do lugar, que era finório e renitente aos trocos; quando calhava, esse tio também dava injecções aos enfermiços, curando tosses e protelando mortes. Foi com ele que ganhei o gosto dos romances policiais e das peripécias intermináveis de Rocambole e do Conde de Monte Cristo. A voragem do tempo ficou então marcada, para mim, por essas periódicas passagens pelo velho casarão, com o tal corredor um pouco soturno, risca ao meio entre quartos vazios, onde o tabuado chiava como se também ele estivesse predestinado a bater as aldrabas dos instantes repetidos. Por isso, fui assistindo ao envelhecimento daquele tio preferido, a quem pedia que reproduzisse aquela intriga do Crime no teatro chinês e aquela vingança de Edmundo Dantès, o forçado que tiraria a desforra dos seus sicários abjectos. E quando ele hesitava neste ou naquele momento da narrativa, eu corrigia, aditava, clarificava. Então ele, batendo na cabeça, dizia: «Sim, é isso, é isso. E eu que já soube tão bem esse contar!...». E agitava as mãos, como um náufrago a quem tivesse fugido a bóia. Em certo ano encontrei-o mais esquálido, com a barba por fazer, e sem atinar com a tábua que rangia exactamente à vigésima quinta passada. Quando lhe quis lembrar o motivo que levara Phileas a ganhar a sua aposta na Volta ao mundo em oitenta dias, ele voltou para mim uns olhos implorativos, marejados de húmidas penas, e obtemperou: «Cala-te, cala-te, já quase nada me ocorre». Na visita seguinte, quando eu e a minha irmã o fomos saudar, ele levantou-se de um salto e, muito exaltado, acariciando os cabelos dela, murmurou: «Tu, meu anjo loiro, tu vais ser a salvação do mundo. E é preciso que eu parta para que esse efeito se possa alcançar. Mas sobre isto, nem um pio para ninguém. Há denunciantes por toda a parte. Silêncio! Nem uma palavra, ouviram?».

Foi então que eu aprendi que a velhice não é um sinal de loucura. É antes a porta de entrada num mundo maravilhoso, numa fábula infinita, a caminho da mais espantosa das aventuras.

3 comentários:

Luís Alves de Fraga disse...

Caro Amigo,
Para além da beleza natural de um relato que ganha contornos de um real palpável e visível, há a conclusão a que chega e essa prende ainda mais a minha atenção.
«É antes a porta de entrada num mundo maravilhoso, (…)». Se olhando a realidade pela perspectiva que nos oferece, concordo consigo, mas se for espreitada pela fresta do sofrimento físico, das dores que tolhem os movimentos, então é um fardo que só a inconsciência da vida pode justificar. E note que quero ficar mais velho! Sou daqueles que por forma alguma vira as costas à Vida e dela desiste. Quero viver, esperando ter a sorte de me manter capaz de contar histórias aos meus netos e de com isso me comprazer.
Admiro a sua sensibilidade, porque só um poeta poderia sentir como o meu Amigo sente.
Um forte abraço

Anónimo disse...

AQUELA VELHA CASA

Naquela casa antiga, cujas portas
há muito estão fechadas, já não mora
pessoa alguma, que se saiba, agora
porque talvez estejam todas mortas.

Foi casa nobre, incontestavelmente,
pelo brasão que ostenta na fachada,
bem como como por aquela enorme escada
que lhe daria acesso pela frente.

Ali se amou, ali se conviveu,
ali se festejou, lá se morreu
na católica fé dos seus maiores.

Sempre que por lá passo, nunca posso
deixar de ciciar um padre-nosso
pelos seus falecidos moradores!

João de Castro Nunes

Anónimo disse...

SUAVE LOUCURA!

Que belo, Professor, que deve ser
envelhecer assim, paredes meias
com a loucura... vendo luas cheias
onde há tão-só razões para sofrer!

Que doce envelhecer endoidecendo
aos poucochinhos, insensivelmente,
sem darmos conta de que a nossa mente
se vai por natureza esvanecendo!

Vogar, no fim da vida, entre as estrelas,
partir sobre o convés das caravelas
em busca de oceanos... por achar!

Contar aos netos, sérios a fingir,
fazendo esforços para não se rir,
proezas... praticadas... a sonhar!

João de Castro Nunes