3 de março de 2012
REFLEXÃO POUCO QUARESMAL
O humor, como fenómeno eminentemente humano, interessa-me e mobiliza a minha atenção. Há pessoas, situações e coisas a que achamos graça, desencadeando em cada um de nós uma gama de resposta emocionais, que vai do discreto sorriso até à sonora e incontida gargalhada. Na cultura clássica, os deuses riam. Segundo Homero, teria sido inextinguível o reboar dos risos provocados pelo caricato andar de Hefestos, o deus coxo. Não assim no Cristianismo. Nos seus primórdios, figuras tão representativas como Tertuliano, Cipriano e João Crisóstomo condenavam com severidade as manifestações de ruidosa alegria. S. Bento dispunha, muito hirto, que os monges não deveriam “dizer palavras vãs e chistosas ou amar o riso franco e frequente”. Propagara-se a tradição de que o Divino Mestre, Jesus Cristo, nunca teria rido. Por isso, o riso humano aparecia como próximo da heresia. Inculcou-se a ideia de que o riso era a consequência da imperfeição humana. Mas esta imperfeição estava de tal modo plantada no coração da espécie que havia que a tolerar, disciplinando-a. Por isso, a Igreja Católica transigiu com o Carnaval: três dias de descomedimento, para muitos outros de recolhimento e mortificação, na longa Quaresma que se lhe seguia. A morte de Cristo na Cruz, relembrada em todas as Quaresmas, era o preço que haveria a satisfazer por esses três dias de gáudio. Esse preço era o da penitência e oração. O Cristianismo foi, desde sempre – e sê-lo-á para sempre – a “religião da culpa”. O Espírito navegou sobre as águas prostradas da pecaminosa Humanidade e matou os prazeres do corpo, as efusões da matéria, os “excessos” da alegria. E a vida converteu-se, nesse viático de sombra e de fel cumprido junto do monte de Gólgota, numa simples preparação para o fim, numa “arte de bem morrer”.
Com os seus ruídos, as suas orgias, os seus bacanais, as suas saturnais, o seu gosto de exaltar a Beleza perecível dos corpos, o Paganismo foi sempre preferido por mim relativamente à frigidez das sacristias católicas. E morrerei pagão. Graças aos deuses ! Aos deuses, no plural.
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