14 de março de 2012

LAUTRÉAMONT, MILLET E DALI



“Belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de operações, de uma máquina de costura e de um guarda-chuva” – assim se exprimiu Isidore Ducasse, obrigatório antecessor do movimento surrealista, que em 1869 escreveu os seus “Cantos de Maldoror”, sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont. Este paradigma de Beleza será certamente motivo de mofa para os defensores da “realidade objectiva”. Mas, se nos colocarmos no ponto de vista de Sirius, o que vem a ser a “realidade objectiva”? Imaginemos que este tal mundo, dito objectivo, era habitado não por humanóides mas por máquinas e objectos utilitários, possuidores de uma qualquer forma de “interioridade” e de mecanismos tensionais que lhes permitissem cumprir objectivos. Imaginemos ainda que, do mesmo modo que nós, humanos, estamos sujeitos a doenças tratáveis em hospitais, também estes neo-mundanos careceriam de revisões periódicas – como os automóveis – para continuarem a “existir”. Que argumento então poderia ser aduzido para que o Belo não fosse, efectivamente, “o encontro fortuito, sobre uma mesa de operações, de uma máquina de costura e de um guarda-chuva”? É inegável, a meu ver, que a pretensão de “objectividade” conduz a uma contracção de campo, a uma forma de empobrecimento cognitivo. Em 1934, Salvador Dali aplicou justamente este paradigma de Beleza na análise, através do seu método “paranóico-crítico”, do celebérrimo “Angelus”, quadro da autoria do pintor Jean-François Millet. A metodologia “paranóico-crítica” aborda a realidade sem o preconceito do “objectivismo”; nessa medida, postula como “realidade” toda a florescência de conceitos ou imagens, nascidos da espontaneidade de observação ou da simples técnica freudiana da “associação livre”. Dali, contudo, sujeitou-se aqui ao princípio normativo de Lautréamont, ou seja, quis provar que o quadro de Millet era Belo porque obedecia ao aludido enunciado. Observemos o “Angelus”, cuja simbologia imediata irradiou e ressoou pelo mundo como meditação contrita e agradecida de dois camponeses ao Divino, num fim de tarde brumoso, talvez ao som das Trindades eclesiais. Para Dali, é óbvio que o camponês é o guarda-chuva e que a camponesa é a máquina de costura. A teoria freudiana dos sonhos atribuíra carga simbólica fálica aos objectos pontiagudos e especialmente aos guarda-chuvas. Por outro lado, observa Dali que o chapéu rural do camponês, tapando parcialmente o baixo-ventre, só pode cumprir o desígnio de encobrir a erecção. E a camponesa? Escutemos Dali: «Em frente dele [do camponês], a máquina de costura, símbolo feminino bem conhecido de todos (…) exibe a virtude mortal e canibal da sua agulha de picagem cujo trabalho se identifica com essa superfina perfuração da louva-a-Deus «esvaziando» o seu macho, isto é, esvaziando o guarda-chuva, transformando-o nessa vítima martirizada, mucha e depressiva em que se torna todo o guarda-chuva fechado, após a magnificência do seu funcionamento amoroso, paroxístico e tenso de há pouco ». Acrescentemos, agora por nossa conta, que este «esvaziamento» a que alude Dali corrobora a verificação naturalista, fisiológica, que nos assegura que todo o macho fica triste depois do coito. Finalmente, a mesa de operações remete-nos para os demais elementos não-antropológicos do quadro, ou seja, para o campo lavrado, para o céu debilmente iluminado pelas últimas radiações e para o manto de nuvens pré-crepusculares que adensam a devoção “objectiva” e entremostram a fertilidade simbólica do que é captável para paranóia metódica.
Ou seja, o “Angelus” de Millet é Belo, porque realiza o encontro fortuito de uma máquina de costura e de um guarda-chuva, numa mesa de operações.

2 comentários:

João de Castro Nunes disse...

Na base, Professor, toda a questão
é de índole tão-só vocabular:
tudo consiste na definição
do que por "belo" cumpre ajuizar.

Não sendo "belo" um termo popular,
correspondente a "lindo" e a "bonito",
há que entre os três vocábulos, a par,
os sujeitar à lupa de um perito.

De qualquer modo, achei de grande engenho
o seu raciocínio entrando a fundo
no esconsdo labirinto do desenho.

Sobremaneira admiro sem senões
o seu saber muitíssimo profundo
em tais domínios... cheios de alçapões!

JCN

João de Castro Nunes disse...

*





Trindades




Quando as tradicionais Ave-Marias
ecoam nas igrejas da cidade,
vem-me à lembrança a tua piedade
rezando à Mãe de Deus todos os dias.


Fosse qual fosse o sítio onde estivesses
ao toque das Trindades te detinhas
e no pausado tom das ladainhas
fazias a Maria as tuas preces.


Com toda a devoção, travando o passo,
religiosamente agora faço
o mesmo que fazias nessa altura.


Sinto dentro de mim, nesses momentos,
um misto de devotos sentimentos
que a Deus e a ti me ligam com ternura!


João de astro Nunes