19 de julho de 2007

BAUDELAIRE E O RISO

Desde sempre que a tradição cultural do Ocidente se aplica à compreensão do riso. Os deuses da Ilíada são mais risonhos do que os da Odisseia, mas em ambos perpassam brisas de mútuas mordacidades. Hipócrates preocupou-se com o riso de Demócrito de Abdera, aparentemente doentio, e diagnosticou que a causa dos seus males estaria na hegemonia da bílis negra no organismo do padecente. A Idade Média perfilhou um recolhimento sumamente sério na sua vertente oficial, à imagem e semelhança do Deus terrífico do Antigo Testamento e mesmo de um Jesus Cristo que, a dar crédito aos exegetas do Novo Testamento, nunca teria rido. Porém, esta mesma Idade Média descompõe, nos folguedos populares da “festa dos tolos”, da “festa do burro” ou do “riso pascal” a hierática e hierárquica postura dos poderes temporal e espiritual. Rabelais, em pleno século XVI, elevará o cómico grotesco à dimensão de uma filosofia de vida. O século XVII rirá palacianamente, entre as colunas dos palácios, antes que Voltaire traga o riso para a praça pública, fustigando com ele a aliança entre um Altar ultramontano e um Trono absolutista.
Mas será no século XIX que se assistirá ao processo de autoconsciência do riso. Baudelaire foi o autor que lhe tentou apurar a natureza mais íntima. E, à semelhança de uma outra obra sua, viu nele uma flor do mal . A troça, a gargalhada, o motejo limitar-se-iam a denunciar a diabólica convicção de uma superioridade. Rimos dos demais porque nos consideramos superiores a eles, porque nos persuadimos que jamais incorreríamos nas mesmas inépcias, nos mesmos ridículos, nos mesmos primitivismos. O riso seria a expressão do satânico, embora de um satanismo intrinsecamente humano, porque completamente identificado com a forma perversa de encarar a alteridade. Aliás, é esta mesma imposição de alteridade que nos obriga a discernir entre o riso judicativo e condenatório, o tal riso diabólico, traduzível num rir de, por oposição a um riso de acolhimento ou de bonomia social, materializável num rir para, ou ainda a um riso de conluio, de cumplicidade, de convergência fraterna, consubstanciado num rir com. Ora, estas duas últimas dimensões do riso teriam sido completamente ignoradas por Baudelaire, o qual prolongou, em pleno século XIX, as prevenções que os Padres da Igreja projectaram sobre o acto de rir.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

Caríssimo Amigo,
Estive ausente. Ausente física e mentalmente; ausente dos Amigos e dos blogues – meus e alheios. Estava necessitado.

As suas doutas e muito bem estruturadas postagens são para mim, leitor comum, um verdadeiro desafio: gosto de lhes acrescentar o meu insignificante ponto de vista ou, se preferir, a opinião de quem anda “na rua” de olhos abertos com o prazer de ver para pensar.

A propósito do riso – que tão magnificamente “encaixa” nos autores que o definiram ou lhe deram contornos – gostava de deixar por aqui um pensamento disperso, vulgar: duas adjectivações: o riso alvar, bronco, e o riso inteligente, subtil.

Quantitativamente, apoiado numa mera percepção sem fundamento científico, diria que o primeiro – o alvar ou bronco – está cada vez mais a crescer numa sociedade que vive do consumismo a qualquer preço, porque, importante, hoje em dia, é gastar no desnecessário os cabedais que podem faltar para o essencial. Este acto, que parece esgotar-se no campo da Economia, transcendo o social e reflecte-se nos comportamentos quotidianos, aceitando, sem o crivo da mais elementar crítica, a alarvidade de tudo o que é simples, boçalmente simples. O riso brejeiro deu lugar ao riso alvar, massificando e massificado através de meios de comunicação globalizantes.
Assim, em poucas décadas, o riso deixou simplesmente de ser um substantivo isolado para precisar de um adjectivo caracterizador, pois como mero resultado de um estado de espírito alegremente momentâneo foi habilmente subvertido em um artigo para consumo sem limites.

O riso subtil surge como contraponto ao anterior, mas cheio de subentendidos; perdeu a virgindade que lhe advinha da inteligência de quem o soltava para ganhar a manha de todos quantos querem parecer o que não são, exactamente porque, numa sociedade edificada sobre símbolos e não sobre valores reais, toma-se quem parece por quem é ao contrário de se desmistificar o efeito pernicioso que o consumismo introduziu, subvertendo, conceitos que o comércio antigo, feito na base das necessidades, desde sempre havia deixado construir.

Deixo-o com a dúvida – que me assalta, também – se, afinal, o riso pode ser fruto de lucubrações que vêm da área da Economia e da Política ou se deveria quedar pelos tão belos, transparentes e singulares domínios da Filosofia e da Literatura.