Ninguém sobrevive sem mitos ou, pelo menos, ninguém prescinde do mito de si-mesmo. Este confunde-se, no limite, com a auto-estima. Se é assim com os sujeitos individuais, também assim é com os sujeitos colectivos, quer se lhes chame corporações, sindicatos, grémios, associações ou nações. Importa sublinhar que cada um destes sujeitos colectivos engendra, a partir de si mesmo, formas típicas de representação. Elas decorrem de todo um acumular de experiências, belas ou feias, arrebatadoras ou vexatórias, imanentes ou transcendentes, imediatas nuns raros casos, mediatas na maior parte dos mesmos. Tanto faz que estes momentos de identidade sejam designados por paradigmas, símbolos ou padrões; é indiferente que uma turbamulta de bem-pensantes os negue ou vitupere; é ocioso que façamos de conta que eles não existem. A sua força ontológica é tamanha que se nos impõe sem contradita, com a mesma naturalidade das montanhas ou das estrelas.
Somos ocidentais, europeus e cristãos – queiramo-lo ou não. E, ao sê-lo, por muito grande que possa ser a nossa indiferença religiosa ou até a nossa militância ateísta, o tema do Crucificado vem até nós e subjuga-nos – ao menos uma vez por ano.
Somos ocidentais, europeus e cristãos – queiramo-lo ou não. E, ao sê-lo, por muito grande que possa ser a nossa indiferença religiosa ou até a nossa militância ateísta, o tema do Crucificado vem até nós e subjuga-nos – ao menos uma vez por ano.
Na história do pensamento ocidental foram feitas as mais esforçadas tentativas para a aniquilação desta espécie de mito identitário, sempre sem resultados. Referindo apenas a Época Contemporânea vislumbramos, como momentos supremos de negação, a tentativa dos revolucionários franceses de 1789 e os cultos de substituição nessa altura encetados, desde a Teofilantropia ao Culto Decadário, passando por todas as modalidades de Panteísmo ou de Religião Natural; veio também Augusto Comte e a sua Religião da Humanidade; apareceram seguidamente Marx e Engels e os diversos ateísmos radicais do século XX. O Supliciado do Gólgota resistiu. Parece até que resiste tanto mais quanto maior é a visível decadência institucional das suas Igrejas. Por que acontece então isto? Porque Cristo é o perfeito emblema simbólico do drama humano. Ele recolhe os vagidos inocentes do nascimento – e faz-se Natal ; depois, acompanha a história da luta pela sobrevivência das nossas mais convictas verdades – e faz-se Pastor; e é ainda Ele o depositário de todas as nossas fragilidades, de todas as nossas dores, de todas as nossas decadências, de todas os nossos pressentimentos de finitude – e faz-se Paixão. Assim, como emblema do que fomos sendo na multissecular estrada do Ocidente, a história de Cristo deixa de ficar contida em si mesma para passar a ser o elo de suporte entre todos e cada um.
Escrevo isto porque sou religioso? Não. Sei-me agnóstico. Escrevo isto porque sou, como quase todos nós, um cristão do Ocidente.
Escrevo isto porque sou religioso? Não. Sei-me agnóstico. Escrevo isto porque sou, como quase todos nós, um cristão do Ocidente.
1 comentário:
Curiosa esta abordagem à cultura ocidental – melhor dito, mediterrânea-europeia.
Este agnosticismo teológico, mas cristão, de que fala, dá forma, em política, a tomadas de posição que se julgam desenraizadas da matriz cristã e, acima de tudo, católica, mas que mais não são do que manifestações de uma cultura fruto de um mito: o do Cristo Redentor que só o pode ser por ser, também, origem da Vida. Recordo-me, por exemplo, da problemática do aborto; tema que ultrapassa a moral cristã para ser quase aceite como uma questão de moral comum, de ordem cultural. E quantos se esquecem de que, sendo agnósticos e, até, ateus, ao tomarem posição contra o aborto estão a tomar posição a favor da religião que definiu um Cristo Redentor? Estará no mesmo plano a pena de morte? E a eutanásia?
Pode decretar-se o fim de uma religião, mas não se decreta o fim de uma cultura. As culturas corroem-se, dissolvem-se, diluem-se, porque as culturas enformam as mentalidades e a transformação destas é sempre lenta e cheia de recuos e avanços. O Crucificado, como tão bem lhe chama, queria somente ser o Cristo dos Judeus e foi, afinal, por força não Dele, mas de quem O usou, o mentor de uma cisão na religião que era a Sua. Aí começou o mito, aí começou a cultura judaico-cristã, aí, lentamente, foram os homens construindo o Natal, o Pastor e a Paixão. E, lentamente, o Natal vai deixando de ser uma identidade com o nascimento para se aproximar do grande potlatch da cultura cristã ocidental. O Menino Jesus foi substituído pelo Pai Natal.
Um grande abraço com votos de excelente 2008
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