4 de junho de 2012

UMA AFIRMAÇÃO INDECIFRÁVEL

Cruzei-me com um sujeito, homem aí para os seus trinta e tais anos, que envergava uma camiseta com as cores nacionais e com uma inscrição onde se podia ler : “Campeonato Europeu de Futebol”. A meio da peça de roupa, escrito a negro garrafal, estava escrito “Até os comemos !” . Aquilo perturbou-me muito. Decidi puxar pela imaginação, tentando decifrar o hieróglifo. Eu bem sei que a crise é grande e que a fome é uma realidade objectiva no Portugal hodierno. O que me assustou, de início, foi aquele cafreal apelo a formas primitivas de canibalismo. É que ainda existe o Banco Alimentar Contra a Fome, talvez até a Sopa dos Pobres e uma imensidade de baldes do lixo, os quais, quando colocados junto a grandes superfícies ou a restaurantes caros, permitem à indigência uma actividade recolectora de restos de batatas fritas e da parte rilhosa do bife que me parece não despicienda. “Até os comemos !” ? Não, aquilo deveria ter um sentido oculto, cabalístico, que urgia averiguar. Talvez pudesse ser um apelo bovino, melhor dizendo, herbívoro. O que aquele homem pretendia dizer era que se aprontava para deglutir todos os relvados onde jogaria a selecção portuguesa,ou seja, com pitança garantida, pelo menos, durante a primeira fase do evento desportivo. Seria isso? Mas depois lembrei-me que, sendo aquele Concidadão um viril exemplar, de estatura mais do que mediana, e além disso bem parecido, a inscrição poderia ter uma qualquer implicação sexual. Espinhosa dedução, convenhamos, pois o exemplar não vestia trajes cor-de-rosa e , assim sendo, o que deveria constar na camiseta era a frase “Até as comemos!”. Há tipos que para garantirem a sobrevivência do membro viril já se habituaram às técnicas de “marketing”. Mas achei que não deveria ir por aí. A informação encontrava-se omissa, quer quanto ao comprimento (em centímetros) da mercadoria, quer quanto à especificidade das destinatárias. Afinal, a preferência encaminhar-se-ia para as morenas, loiras ou ruivas ? E comia-as uma por uma ou por atacado? Ponderei, por isso, a eventualidade do dístico se dirigir a alguns membros da comunidade “gay” – e digo “alguns” e não “algum”, devido ao plural. Mas também não batia certo. A comunidade em causa é comedida, contida, reservada, numa palavra, morigerada, e nunca se prestaria a uma tão alarve manifestação de apetites. Foi então que , penosamente, acabou por se fazer luz na estreiteza do meu espírito. O assertivo Concidadão decerto se dirigia à Alemanha, pois será com essa selecção que Portugal jogará o seu primeiro jogo. Se o dístico dissesse “Até a comemos!”, ficaria desde logo transparente que a iguaria que aquele português pretenderia comer era a Chanceler Ângela. Como quem isto escreve ainda preza o bom-gosto masculino da portugalidade, logo se excluiu, a eventualidade deste melro querer comer a Merkl na horizontal. A fome, em Portugal, é efectivamente muita. Mas, c’os diabos, há limites de bom gosto que nem a Gestapo ( a existir) nos poderia obrigar a engolir … Portanto, o sentido era figurado e , além do mais, vingativo. Expliquemos: como a Alemanha nos come os juros da dívida em sentido próprio, nós, gente de brandos costumes, estávamos a dizer, através daquele painel ambulante, que nos iríamos vingar, digerindo em sentido próprio a Merkl, com sucos gástricos e entéricos. Houve desde logo uma interpretação que eu liminarmente afastei: a da camiseta poder interpelar os jogadores da selecção alemã. Podem-se lá comer machos de chuteiras e pêlos nas pernas, transpirando por todos os poros, cheirando fetidamente a sovaco por limpar e correndo como doidos atrás de uma bola de couro ! Permaneço , em face do exposto, mergulhado na mais triste e desprimorosa confusão mental. Pode ser que se faça luz no meu empedernido cérebro, lá mais junto da hora de jantar.

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