1 de junho de 2012

UMA ELEGANTE REFEIÇÃO

Era uma vez um país chamado Portugal, onde se encontraram, numa tarde sem fastio, um estivador, um trolha e um reformado de pensão mínima. Decidiram, depois de muito cogitarem, que tinham de almoçar num sítio de boa reputação. Mas também convencionaram que, no interior desse venturoso estabelecimento, o estivador seria tratado por “Senhor Arquitecto”, o trolha por “Senhor Engenheiro” e o reformado com a pensão mínima por “ Senhor Professor Doutor” , por extenso e “cum magno gaudio”. Claro que envergaram o “fatinho-de-ver-a-Deus” , escolheram o melhor restaurante da cidade e irromperam nele como Napoleão irrompeu no leito de Josefina, depois de um suadoiro bélico de "alto-lá-com-o-charuto" (o charuto conheceu-o a Josefina, mas isso são outros contares). Aboletaram numa mesa centralíssima, não sem que antes tivessem simulado a rábula sobre quem pagaria a conta. Dizia o estivador para o trolha: “ Tenha paciência, Senhor Engenheiro, hoje a conta é minha. O Senhor Engenheiro já pagou aquele jantar de lagosta no casino. Nem tente dizer que não”. Ao que o trolha replicava : “ Oh, Senhor Arquitecto, não vai lembrar essa insignificância. Ora, ora, meia dúzia de tostões …”. E o reformado com pensão mínima obtemperava: “ Parece impossível, meu Estimado Engenheiro ! Oh, Senhor Arquitecto, nem discutam mais. Hoje a conta pertence-me e está tudo resolvido”. Ao que o trolha redarguia: “ O Senhor Professor Doutor vai-me perdoar, mas nós os dois não iremos consentir que uma glória da Universidade portuguesa vá agora pagar uma tão desprezível quantidade de euros”. O empregado do restaurante, muito atilado e correcto, estava absolutamente siderado. E quanto mais lhe caíam nos ombros as designações de “Senhor Professor Doutor”, “Senhor Arquitecto” e “Senhor Engenheiro” mais ele se perfilava, com o meio-sorriso de idiotia entranhada e a verticalidade da obediência ancestral. Comeram e beberam do bom e do melhor: ostras, lavagante suado, camarão- tigre dos mares da Malásia, sericaia de Elvas, tudo regado a verde branco Alvarinho e a “Don Perignon”, este último acolitando a sobremesa. Quem esteve perto, garantiu que foram audíveis arrotos triunfais. Esta desagradável ocorrência foi prontamente infirmada pela Dona Balbina, que ouvira toda a conversa e que garantiu depois que nunca um Arquitecto, um Engenheiro e um Professor Doutor se poderiam comportar dessa forma dispéptica e obsoleta. O admirável grupo, depois de bem atulhado, levantou-se em dois tempos e desapareceu porta-fora. O empregado, em estado de cretinização avançada, correu para o escritório da gerência e, muito vermelho e engasgado, cuspiu para o patrão : “Senhor Pires, senhor Pires, aquela mesa do Professor Doutor, do Engenheiro e do Arquitecto pirou-se pela porta fora, sem pagar; que é que eu faço ? que é que eu faço ? Ligo à Polícia, Senhor Pires? Ligo ? Ligo?”. O Senhor Pires, homem longilíneo e de barbicha judaica, que se julgava mais batido nas asperezas da vida do que as meretrizes do Bairro Alto, suspirou muito fundo, encolheu os ombros magros e decretou : “Passa a conta à gerência. Engenheiro, Arquitecto e Professor Doutor, à molhada, só pode ser um grupo de “vígaros” do Governo. Com essa canalha não me posso meter. Olha, rapaz, aprende, que eu não vou durar sempre”. A Dona Balbina, muito gesticulante, continuava a garantir na mesa dela que aqueles Senhores distintos nunca teriam sido capazes de arrotos superlativos em público.

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