O cinismo, tão mal visto ao longo da história por sucessivas gerações idealistas, converteu-se hoje no último bastião da denúncia ética. O cinismo repousa, fundamentalmente, numa reserva mental e no recurso à falsa aparência: numa reserva mental porque o cínico sabe, no interior de si próprio, que rejeita os valores da sociedade que o rodeia; numa falsa aparência, porque ele também sabe que a simulação de obediência à realidade instalada é o preço a pagar pela sua sobrevivência. Não nos enganemos com as roupagens da chamada “liberdade democrática”. A democracia representativa, tal como foi instalada pelos distantes revolucionários de 1789, nunca quis ser outra coisa senão a contrafacção das opressões anteriores, agora com novos comparsas de classe, a que se somou, apressadamente e de forma nem sempre convicta, a mitologia do sufrágio universal. Foi um negócio de ciganos que, a espaços, convenceu os feirantes de que alguma coisa de novo e de edificante se poderia esperar. Foi o que se passou, por exemplo, nessa “alvorada dos povos” do ano de 1848, rapidamente volvida em crepúsculo de tirania e de imperialismo. Foi também o que aconteceu, por exemplo, no Maio francês de 1968 ou, à nossa pequena escala, no Abril de 1969 e de 1974. O que a ciganagem dos poderes acabou por conseguir está aí, à vista de todos. Assim, as esperanças vencidas, traídas ou trapaceadas acabaram por se acolher ao ninho de corações desiludidos, sim, mas também tangencialmente resistentes. Foram esses que disseram para os botões da farpela usada pela antiga crença: “vou fazer de contas que gosto disto; vou simular que estou adaptado”. São estes os cínicos autênticos, aqueles que ainda podem contar no amanhã. Um protesto surdo, qual sombra vaga em alma dolorida, espalha-se por comportamentos aparentemente conformados. Dirão os mais rigorosos que falta aqui a figura do resistente à outrance. Faltará? Por mim, que sempre gostei do teatro de sombras chinesas, confio mais num bom cínico silencioso do que nos uivos parlamentares de um resistente histérico. Tenho o primeiro por mais fiável … e até por mais honesto. Mas isto sou eu a pensar alto: não liguem !
20 de julho de 2008
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3 comentários:
BASTARDOS DA LIBERDADE
Por esse país fora há muita gente
gritando liberdade aos quatro ventos,
a qual ainda há pouco, anteriormente,
não lhes dizia nada aos sentimentos.
Nas cátedras, nos postos de comando
das mais diversas forças da nação,
bem se iam, de bom grado, governando
de cara alegre e plena aceitação.
Inspiram-me asco tais oportunistas
que mais não são, na actual comunidade,
que ignóbeis fariseus da Liberdade.
Tudo fazendo para dar nas vistas,
alegam seu passado... inconformado
com a opressão... do precedente Estado!
João de Castro Nunes
CINISMO OU IRONIA?
Sem pôr em causa a sua "santidade",
nunca existiu maior contradição
que a praticada pela Inquisição
durante toda a sua actividade.
Sem admitir qualquer diversidade
em matéria de fé, de opinião,
à sombra do espírito cristão
encheu de sofrimento a Huminidade.
Lembremo-nos que foi por cometer
um desses "crimes", sem se desdizer,
que Jesus Cristo foi crucificado.
Perante o tribunal dos Fariseus,
por deles divergir, foi acusado
de um crime horrendo de bradar aos céus!
João de Castro Nunes
Caro Amigo,
Compreendi – ou julgo ter compreendido – a sua reflexão, contudo, desta feita, não sei se concordo em absoluto com ela. Não sei, porque um cínico, tal como o define, pode confundir-se, sob a capa do silêncio, com um oportunista que espera a melhor ocasião para mudar de campo e sobreviver em consonância com os seus ideais profundos.
Concordo que a democracia é uma outra forma de autocracia: Marx chamou-lhe ditadura da burguesia por oposição à sua ditadura do proletariado; concordo que a democracia é o regime político que contém em si mesmo, e alimenta-o, o germe da sua destruição. Todavia, ainda continua a ser o único sistema político que, podendo auto destruir-se, pode regenerar-se.
«(…)“vou fazer de contas que gosto disto; vou simular que estou adaptado”. São estes os cínicos autênticos, aqueles que ainda podem contar no amanhã. Um protesto surdo, qual sombra vaga em alma dolorida, espalha-se por comportamentos aparentemente conformados.»
Meu prezado Amigo, nesta mesma massa moldam-se os coveiros da democracia e da liberdade; também se moldam os conspiradores e idealistas que a podem salvar!
Compreendo-o, mas não tenho a sua fé… Tenho visto tantos traidores! Tantos “arrependidos”! Tratar-se-á de uma questão de ser ou não ser rigoroso?
Com a admiração de sempre, um forte abraço
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