O noticiário diz-me que os representantes dos mais ricos países do globo reuniram num qualquer lugar deste peregrino mundo para discutirem gravemente o flagelo maior da Humanidade: a fome. A conversa foi renhida. Tão renhida e séria, tão polémica e incandescente que fez … fome. As sublimidades foram então almoçar, acrescentando o noticiarista que o apetite era muito. Mas as vitualhas escolhidas revelaram-se à prova de quaisquer exigências estomacais e dos mais imperiosos assomos de requinte. Sabe-se que foram servidas trufas negras, vinhos preciosos e toda a casta de iguarias, dignas de Nero e do seu afeiçoado Petrónio. Como era de prever, o conciliábulo terminou sem conclusões, mas com muitos "tagatés" e votos de mútuas prosperidades, formulados pelos ilustres convivas. Todos falaram, aos brindes da sobremesa, nas crianças do Sudão, nos velhos da Etiópia, na penúria de certos pueblos mexicanos, nas patifarias de Mugabe e nas razias da tuberculose, já às portas da Europa, seguramente trazida por etnias magrebinas, em migratórias demandas, incómodas e pouco recomendáveis. Depois rumaram todos às suas casas, convictos de que o problema da fome no mundo é de tal maneira sério que se tornavam necessárias, para o resolver cabalmente, mais umas cinco ou seis reuniões, iguais à que decorrera. O jornal não dizia o mais importante, ao omitir que a vergonha é hoje um prurido escasso. Tão escasso como as trufas negras.
6 comentários:
Caro Amigo,
Isto tem um nome simples, mas expressivo: hipocrisia!
Mas hipócritas é o que de todos nós fazem os órgãos de comunicação social. Brindam-nos com horrores e, logo de seguida, solicitam-nos para o consumo do desnecessário, usando os mais sofisticados anúncios que jogam com mecanismos escondidos do nosso inconsciente. A morte, a fome, a guerra, a peste, passam-nos ao lado, adormecidos que estamos pela publicidade, pelo hábito do sofrimento alheio. Se nos passam a nós, como não passarão a quem faz da hipocrisia a sua mais constante forma de estar, pois que, para alguns, já se transformou em forma de ser?
De quando em vez, os mesmos órgãos de comunicação social, que nos anestesiam todos os dias, despertam-nos com safanões tais como a notícia que o meu Amigo, muito bem, amplifica.
INIQUIDADE
Escandalosamente Portugal
tornou-se num país onde a miséria
ombreia com o grande capital
sem nada se fazer nesta matéria.
Enquanto a maior parte da nação
vive de escassos meios económicos
não falta gente, em postos de gestão,
fruindo de ordenados astronómicos.
Há que denunciá-lo abertamente
e em nome dos princípios da justiça
pôr cobro aos exageros da cobiça.
Entre as várias nações do continente,
por muito que este quadro se componha,
somos um caso extremo de vergonha!
João de Castro Nunes
TREZE... A ZERO
Para cada juiz do Tribunal
que tem concretamente por missão
verificar se face à Constituição
qualquer acção política é legal,
para seu uso próprio e pessoal
foi posto, sem nenhuma precisão,
um automóvel à disposição
topo de gama, sensacional.
E o povo mergulhado na miséria,
com salários de fome e de vergonha,
além dos que deixaram de ter féria!
Perante este cenário exorbitante
não haverá. meu Deus, ninguém que ponha
às quatro rodas um travão bastante?!
João de Castro Nunes
"TRUFAS NEGRAS"
(Em homenagem ao Prof. A. Carvalho Homem, a jeito de plágio em forma de soneto).
Esclarecido e humano Professor,
confesso que bastante me chocou
o que nos diz da falta de pudor
da classe que o poder açambarcou.
Uns quantos figurões credenciados,
em parte incerta, não manifestada,
há dias se juntaram combinados
para tratar da arraia esfomeada.
Nada foi resolvido sobre os meios
de atenuar a fome que avassala
os povos de que toda a imprensa fala.
O resto, há que dizê-lo sem rodeios,
passou-se, à conta disso, a comer bem
do bom e do melhor que o mundo tem!
João de Castro Nunes
MAUS PRENÚNCIOS
É mais rara a vergonha comprovada
da classe dos políticos de agora
que a trufa negra apenas reservada
a quem tem fundos para deitar fora.
Para levarem a água às suas leiras
mentem com quantos dentes têm na boca,
perdendo sem pudor as estribeiras
se em suas mordomias alguém toca.
Impantes de prosápia e de opulência,
acabam por não ter qualquer decência
ante a miséria que lhes mora ao lado.
Por este andar, a prosseguir assim,
é de antever que o povo esfomeado
os obrigue a baixar do trampolim!
João de Castro Nunes
SOCIEDADE ANÔNIMA
Flor venenosa amarga, a besta fera
órgão nefasto, coisa apodrecida
broto da morte, lacraia escondida
que toda carne ataca e dilacera.
Te desejei por toda minha vida,
qual aquele menino sem sapatos
que dorme ladeado pelos ratos
para pagar teu karma infanticida.
Maldita! Nem um prato de comida
te dignas a ceder ao miserento
que sofre no vigor do frio vento
enquanto vos deitais adormecida.
Tu serás fino pó, fogo de palha,
isenta proteção de frágeis filhos,
enquanto fores pelos mesmos trilhos
de seres dirigida por canalha.
Por Renã Leite Pontes
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