23 de julho de 2008

HERÓIS E POLTRÕES

As sociedades guerreiras louvaram a figura dos heróis míticos, intemeratos, capazes de devastarem exércitos inteiros e de se isentarem dos mínimos vestígios do medo. Eram épocas de preponderância anímico-teológica, nas quais se acreditava em estranhos fluidos e eflúvios que transformavam em infinitude a própria modéstia corruptível da matéria corpórea. “Mirem, sim, o exemplo” daquele valoroso Aquiles, imerso num banho de inviolabilidade, mas suspenso pelo calcanhar que o haveria de vitimar. O pressentimento de que existe uma afinidade muito íntima entre os homens e os animais foi guardada na Idade Média, não apenas através da tábua de exemplos dos fabliaux, mas também através da escolha de simbolismos heráldicos de casas nobres guerreiras. Nos escudos e pedras de armas dessas castas belicosas preponderaram figurações de animais predadores, supostamente corajosos, indómitos, agressivos, como os ursos e os leões, as panteras e os tigres. Criaturas, essas, sem a sombra de um temor, sem a mácula de uma vacilação medrosa, sem um pingo … de humanidade. Afinal, em que consiste o heroísmo? Digam-no os lutadores profissionais de todos os tempos, digam-no os centuriões, os decuriões, os gladiadores, os pobres soldados das trincheiras. E diga-o também o conhecedor desta unidade biológica, psicológica, sociológica chamada criatura humana. O herói não é o dominador do medo. O medo é indomável, incoercível. O medo subjuga-nos a cada instante em que nos sintamos no limite das resistências e das possibilidades de sobrevivência. Heróis? Que bela fábula, que patranha bem cerzida! É o medo que faz o herói. Este teve sempre – e da mesma forma – o mesmo medo sentido pelo poltrão. O herói é o poltrão bem sucedido. Apenas isso, mais nada. O poltrão é o herói frustrado. E a distância que separa um do outro tem a espessura de uma folha de papel na vertical. O pânico do poltrão paralisa-o, inibe-o, aniquila-o sem luta. O pânico do herói rompe em frente e leva-o ao tudo por tudo. E leva-o a isso como lógica do próprio medo, não como lógica da sua superação. O pânico foi o mesmo. O que variou foi a oportunidade e até talvez o sado-masoquismo (o que Freud nos ensinou acerca do heroísmo é uma das páginas mais cintilantes da história da relatividade humana!). A história cultural da humanidade é um cemitério de mitos. O do herói é um dos mais desprezíveis, como vestígio de idades bárbaras e de militarismos idiotas.

PS - A figura representa o triunfo de três heróis (um dos quais acocorado) sobre um poltrão. O poltrão é o que está a ser vergastado. Parece que ele dava pelo nome de Jesus Cristo.


4 comentários:

Anónimo disse...

MEDO ANCESTRAL

Há que perder o medo e combater
de peito feito e de cabeça erguida
todo e qualquer despótico poder
que nos pretenda controlar a vida!

Há que perder o medo de falar
que vem de muito longe, das raízes,
desde que o humano ser, sem protestar,
se sujeitou a alheias directrizes.

Há que perder o medo de exprimir,
mesmo que alguém nos queira proibir,
o que de pessoal nos vai na mente.

Há que perder o medo e não supor
que nós não temos o menor valor
como se nem sequer fôssemos gente!

João de Castro Nunes

Luís Alves de Fraga disse...

Caro Amigo,
Há muitos anos um professor meu, no âmbito castrense, dizia-me a seguinte frase: «É mais fácil ser herói do ser que honesto… Porque para se ser herói toda a vida basta tê-lo sido uma vez na vida». O remate deixava-o ele à consideração dos alunos que o escutavam.
Conheço bastantes militares que exibem no peito das suas fardas medalhas que os qualificam como heróis. Já tive oportunidade de os interrogar sobre o medo em situações de perigo e todos foram unânimes em dizer-me que o sentiram; às vezes, muito, mesmo.
Fruto de uma educação castrense começada nos meus tenros doze anos de idade (filho de um pai militar e profissional de Saúde que não acreditava em heróis – dos “feitos” em combate – mas que considerava heróica a sua actividade e a de todos os colegas que lutavam diariamente contra os vírus e os micróbios malignos) acredito que o herói é o medroso capaz de, superando-se, vencendo o medo. E todo o nosso treino militar vai nesse sentido: colocar-nos perante situações onde o pânico é mais forte e deixar que saibamos reagir para, arriscando tudo, ultrapassarmos os sentimentos naturais.
«É o medo que faz o herói». Não tenho a menor dúvida quanto a isso! Sem medo não há heróis, porque a heroicidade é, afinal, a capacidade de vencer o medo… o medo de uma barata, de um rato, do escuro, de um cemitério, de uma doença, de almas do outro mundo, de um feroz adversário ou, até, de andar de avião! Heróis somos todos nós quando vencemos aquela paralisia que nos avassala em certos momentos. É isso que todos os militares treinam e ensinam a treinar aos seus subordinados. Vencer o medo, vencer o pânico, mas de uma forma consciente, sabendo os riscos que se correm e correndo-os. Contudo, não se pode ser herói uma só vez na vida! É preferível ser-se um herói anónimo, mas um honesto reconhecido!
Dão-se medalhas a certos heróis – que se mitificam – e a certos desonestos – que se identificam. A “medalha” destes últimos é a condenação judicial, o cárcere, que os “deporta” para toda a vida do seio dos honestos ou tidos como tal.

Uma vez mais, alonguei-me. Maus hábitos!
Com a admiração de sempre, um grande abraço

Anónimo disse...

HERÓIS... OUTROS

À memória de Sir Thomas More

Herói não é tão-só quem oferece
o peito às balas enfrentando a morte;
nem sempre é o soldado audaz ou forte
que esse apelido excepcional merece.

Herói é sobretudo, quanto a mim,
quem perante o carrasco que o tortura
não verga, não se rende, mas perdura
nos seus pontos de vista até ao fim.

Herói é quem no poste das fogueiras
não cede e continua a defender
as crenças que ele tem por verdadeiras.

É perante esses que me curvo e rendo
porque são eles que, segundo entendo,
de heróis o vero nome devem ter!

João de Castro Nunes

Anónimo disse...

HERÓIS, POLTRÕES E SANTOS

Do cobarde ao herói medeia um passo,
uma folhimha de papel de seda,
um breve instante, um minguado espaço,
o tempo de um carvão ser labareda.

E vice-versa pode por ventura
o consagrado herói dar em poltrão,
bastando às vezes ter, a dada altura,
uma oportunidade à sua mão.

Será que ele é produto ocasional
de um fugir para a frente face ao ao medo
que se apodera do poltrão real?

Entre um e outro é mínima a fronteira,
o que não constitui nenhum segredo:
difícil é ser santo a vida inteira!

João de Castro Nunes