13 de julho de 2008

NOS CINQUENTA ANOS DA "CARTA A SALAZAR"

Faz hoje precisamente cinquenta anos que um grande português e um nobilíssimo bispo da Igreja Católica, D. António Ferreira Gomes, confrontou o ditador António de Oliveira Salazar com um documento denunciador do carácter aviltante do regime então vigente. Não se tratou exactamente de uma carta, como ficou impropriamente conhecida, mas de um memorial, através do qual aquele notável representante da hierarquia eclesiástica interpelava Salazar sobre os termos em que poderia ou não ser exercida a actividade política por parte dos católicos. Porém, antes de o questionar sobre tal exercício, D. António Ferreira Gomes examinava atentamente os mais salientes e controversos aspectos da medíocre vida pública do tempo. A chamada “Carta a Salazar” reconhecia que o Estado Novo semeara a miséria e a desesperança por largos sectores da população; que o corporativismo, adoptado como panaceia para desdramatizar as relações de negociação entre o Capital e o Trabalho, era um simples artifício para que aquele exercesse sobre este uma despudorada exploração; que a proibição da greve era uma violência à luz do direito positivo e uma ilegitimidade à luz do direito natural; que a distribuição da riqueza produzida estava longe de ser equitativa e pacificadora, antes produzindo nos mais carenciados o espírito de inconformismo e de revolta; que o “financismo à outrance”, praticado em Portugal, acabava por saldar-se num “economismo despótico”, traduzido “em benefício dos grandes contra os pequenos e finalmente na opressão dos pobres”. Numa palavra, D. António Ferreira Gomes lançava a Salazar e ao salazarismo o desafio de uma denúncia inteligente e fundamentada. Esse memorial, que deveria servir como enunciado de questões a tratar numa futura reunião entre o bispo e o ditador, transpirou para a opinião pública e suscitou nela uma reacção de pasmo. Pois quê? A Igreja Católica portuguesa, poder espiritual tido como conservador e encarado por muitos como cúmplice da ditadura, falava à tirania com o vocabulário de uma viril desafronta? A Igreja acomodada do Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, parecia situar-se nos antípodas desta outra Igreja incómoda, frontal e rebelde. Salazar reagiu ao seu modo provinciano e brutal: aproveitou uma saída do país do seu contraditor para, no regresso, lhe fechar a fronteira. E o bispo do Porto só regressou a Portugal em 1969, em pleno consulado marcelista. D. António Ferreira Gomes cumpriu exemplarmente, no seu pastoreio espiritual, aquela máxima que adoptara nos inícios da sua edificante carreira e que o mandava estar de joelhos perante Deus, mas de pé perante os homens. Houve na Igreja daquele tempo, há cinquenta anos, num país vergado à sanha de verdugos medíocres, uma Consciência que se recusou à capitulação. Essa Consciência foi a do bispo D. António Ferreira Gomes. Evocá-lo hoje é um dever de gratidão e um direito de cidadania.

3 comentários:

Anónimo disse...

FRONTALIDADE

Ao Dr. Joaquim de Montezuma de Carvalho
em homenagem à sua verticalidade mental

Olhar de frente, de cabeça erguida,
olhos nos olhos, sem vergar a espinha,
o lema deve ser de quem caminha
seguro de si mesmo pela vida.

Joelho em terra, nunca! nem que seja
perante o presidente do governo
ou quem o represente neste inferno
em que o país parece que rasteja.

Como dizia um professor primário,
puxemos certo quando necessário
mas sem dar a ninguém... cavalgadura.

Seja aliás qual for a conjuntura,
há que de pé manter-se frente aos seus
e só ajoelhar... perante Deus!

João de Castro Nunes

Luís Alves de Fraga disse...

Foram poucos os acontecimentos com significado político que marcaram, na juventude, os Portugueses que agora têm mais de sessenta anos de idade, orientando-os para a busca da alternativa à ditadura que viveram nesses tempo recuados. Julgo que se podem identificar como marcos inesquecíveis as eleições presidenciais às quais concorreu o general Humberto Delgado, a carta de D. António Ferreira Gomes a Salazar, o falhado golpe da Sé, o assalto ao paquete S. Maria e a tentativa revolucionária da tomada do quartel de Beja. Tudo isto aconteceu de rajada, tendo como pano de fundo internacional a tomada do Poder por Fidel Castro, em Cuba.
O regime salazarista começava a, julgava-se, apresentar brechas nas paredes do edifício tão engenhosamente construído. Puro engano de cálculo de todos quantos desejavam a viragem para a Democracia. A manhosice provinciana do “homem de Santa Comba Dão”, apoiada na eficácia da polícia política e na alienada consciência da grande maioria dos Portugueses, conseguia frustrar todas as saudáveis tentativas de afastamento do ditador. Mas, se contra a força ou a ameaça do seu emprego para destronar o ex-seminarista a vitória estava garantida, contra a inteligência o mesmo não se podia dizer. D. António usou desta última para deixar claras as contradições de um regime opressor. Nesse acto de coragem afrontou a subserviente estrutura hierárquica da Igreja nacional e nacionalista que tinha no cardeal Cerejeira o seu mais lídimo representante. Actuou como o bom e vocacionado pastor que tudo arrisca em prol da defesa do seu rebanho. E ele sabia que no Norte o descontentamento era grande e por lá, também, grassava a miséria física e moral favorável à estabilidade da ditadura.
Recordar D. António Ferreira Gomes e a sua missiva acusatória é um acto de justiça que deveria ter tido maior retumbância do que a alcançada neste cívico blog, cujo autor vai, em cada postagem, colocando, simbolicamente, uma pedra no templo da Democracia. Os próceres do regime em que vivemos – preocupados com a sua própria imagem – esquecem a História e calcam despudoradamente aos pés os sacrifícios de quantos, antes deles, lhes rasgaram a senda por onde hoje se pavoneiam, às vezes, macaqueando a Liberdade.
Muito obrigado pela sua Lição.

Anónimo disse...

Aos actos e factos autorizadamente referenciados por Alves de Fraga eu acrescentaria, com relativa prioridade, o clamoroso caso dos titulares das cátedras universitá~rias que, impedidos de exercer o magistério no país, se foram fazer ouvir em porventura mais altos areópagos estranhos, pondo em causa pela inteligência a legitimidade política do Estado Novo, enquanto a maioria se acomodava e, colaborando, se enchia de benesses e trepava aos almejados e lucrativos postos da governação. Citar exemplos... para quê?!

João de Castro Nunes